Jean Bailly









Jardins suspensos

Jardins suspensos na noite calada que a lua teima a queimar
Uma flor ferida e sangrando está no meu peito
Quase não consigo respirar nesse ar seco
As costelas andam batendo uma na outra
E uma pequena taquicardia arrepia meu corpo

E essa lua cheia dela mesma
E ela cheia se si mesma
E eu cansado de mim mesmo

Minha saudade é uma lágrima que cai em fogo
Olhos de limão verde a arder na inquietude
Corpo cansado e amassado
Ferido e quebrantado no fim do dia que não desejo ver

E ela neste sorriso que rasga minha alma
Iluminando a rua, o corredor, a sala
Cheia dela e vazia de mim


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly








Não deu certo


E ela chorou porque não percebeu sua progenitora.
As lágrimas caíam como bala de canhão
Um suspiro profundo arranhava a traquéia já fraca
e os olhos já inchados traziam lembranças de outrora.
O sofrimento tem destas coisas:
a verdade nua como a mulher da Playboy
pornográfica como as mulheres da Sex
fêmeas que não envelhecem
trocadas com o tempo e com o vento das modas que andam por aí
sofrimentos são assim: passam e voltam com tanta força que balançamos
por vezes nos acostumamos com eles
até nos equilibrarmos...
depois eles voltam mais fortes e envenenam a alma
um pingo de chuva é o bastante para fazer chorar
até a barata preta que morre é motivo de intenso desespero e desconforto.
Imagine a persona que não sai dos seus pensamentos?
A vida é isso: um conjunto inevitável de sofrimentos
Sofrimentos inevitáveis de pedra que persistimos em manter
Realmente! O ser humano é um bicho que não deu certo.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly








O mel
As abelhas são encantadas
Mas o que elas fazem?
Fazem o mel. E levam lá para a Lua
Mas por que a Lua é branca?
Por causa do algodão
A abelha posa em cima e vai flutuando até lá
Você está vendo só o lado do algodão
E o mel? Perguntou a criança:
Deus guarda do lado de lá para os anjos.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly









Simples assim

- Minha mãe disse que eu nasci em uma tarde de chuva e cheia de trovões.
- Talvez por isso que sinto esse medo meio esquisito dentro de mim.
- Mamãe disse que uma cegonha gigante me trouxe em meio de muito amor.
- Mas como?
- Sei lá! Foi o que ela disse.
- A cegonha não ia me agüentar. O pessoal me acha muito gordinho e pesado.
- Me chamaram outro dia de Jô Soares.
- Eu não acho. Você é fofinho, igualzinho ao algodão doce.
- Você acha?
- Acho.
- Se eu te pedir uma coisa, você me dá?
- Qualquer coisa. Pode pedir!
- Pode mesmo?
- Pode. Qualquer coisa.
- Aceita minha borracha nova em troca do seu lápis vermelho?
- Claro que sim. Tome.
- Obrigado.
- De nada.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly








Dias de canário

Ele sempre fora livre
tinha olhos claros do sol
com seu canto hipnotizava o observador
peito de ferro,
sempre pronto a gritar pelo canto a ser roubado.

Acorrentado ficou tal como canário da terra preso
triste
sem asas
horizontes
montes
rios
e telhados.

A liberdade era tudo
o nada
depois virou gaiola de ferro
o canário calou
ficou cansado
canta menos
come alpiste
não sente o cheiro da chuva
tampouco sabe se ela caiu.

Vê tudo de longe
até seus iguais
se bate na gaiola
chora cantando
canta chorando
e pula de um lugar a outro
sem fim
sem mais
até que o dia passa
e a lembrança
os sonhos
da liberdade não voltam
e começa tudo de novo
piu, piu, piu.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly







Vulnerabilidade


Fiquei sabendo que ela caiu. Estava indo devagar para a casa
Tomei um susto tão grande que meu estômago chegou a amargar a língua
Um refluxo violento esquentou minha laringe vermelha
E minha garganta fechou para o ar frio desse inverno.

Ela caiu e não soube o como e o porque
Sua caminhada ao chão foi longa e dolorosa
Não é bom quando os bons iniciam a caída
Lembro-me de espadas em crânios abertos no ar frio de inverno

O cair sempre é vergonhoso para o voyerismo social
O caído, e por vezes machucado, é tomado pela penumbra da vergonha
O sangue fica feroz nas veias e pequenos derrames cínicos invadem os olhos
A adrenalina auxilia, mas nada que esquente o ar frio desse inverno.

A senhora branquinha e linda caiu como uma pluma
Uma nuvem foi ao chão como uma pedra vulnerável
E sua agonia tremeu o meu espírito gelado
O medo da finitude é como a perda da pessoa amada no ar frio desse inverno.

Passou-me na mente seu semblante tranqüilo, alegre e suave
Escutei sua voz pausada, mansa e gentil
Ela faz falta em minha simples vida de ser humano
Sinto saudades do dia que andamos na praça em meio ao ar frio desse inverno.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly


Jean Bailly
Nasceu na Argélia 29.11.1940 . Viveu em Orleães de 1943 até 1950, Em Paris até 1966 e mais tarde em Loiret.
Adquiri a certeza que a pintura seria um dia minha única atividade depois do choque sofrido durante a primeira retrospectiva de George de la Tour, em 1972, em Paris. As personagens de meus quadros substituíram pouco a pouco os objetos de minhas naturezas mortas. Desde então tenho frequentemente a impressão de ilustrar com minha pintura os contos ou versos que não conheço; quer estes já tenham sido escritos ou ainda por ser. Meu objetivo é unicamente pintar, e não escrever.
Nunca então procurei saber o que bem se podia passar antes ou depois desses “pedaços de história”, mesmo se de tempos em tempos tivesse minha pequena ideia sobre a questão. Eu lhe sugiro descobrir um outro caminho:
Invente o seu próprio caminho. Obrigado por ser o mais criativo possível.”







Liberdade

Num dia destes, com chuva ou sol
ainda corto meus cabelos e deixo o meu aquário todo careca,
arranco os pelos do meu corpo só para a pele ficar lisinha como o asfalto.
Perco o pudor e fico tal como as prostitutas em um bordel.
Retorno à minha natureza e deixo que observem minha genitália gigante
Encarno de vez o que todos desejam
e materializo o que andaram esquecendo neste cotidiano enlouquecedor:
a liberdade

Dedicado ao Dia Mundial da Luta Antimanicomial (18/05/2010)


Lúcio Alves de Barros



Lúcio Alves de Barros
Belo Horizonte/MG – Brasil


* Lúcio Alves de Barros é licenciado e bacharel em
 
Ciências Sociais pela UFJF, mestre em Sociologia e doutor
em Ciências Humanas: Sociologia e Política pela UFMG.
 
É autor do livro “Fordismo: origens e metamorfoses”.
 
Piracicaba, SP: Ed. UNIMEP (Universidade Metodista
de Piracicaba), 2004, organizador do livro
 
“Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006,
 
co-autor do livro de poesias, “Das emoções frágeis e efêmeras”.
 
Belo Horizonte: Ed. ASA, 2006 e organizador da obra
 
“Mulher, política e sociedade”. Brumadinho: Ed. ASA, 2009.

Lúcio Alves de Barros

Publicado no Recanto das Letras em 13/09/2009
 Código do texto: T1808312



Moki

Moki






Encantamento


Vi as mulheres 
azuis do equinócio 
voarem como pássaros cegos; e os seus corpos 
sem asas afogarem-se, devagar, nos lagos 
vulcânicos. Os seus lábios vomitavam o fogo 
que traziam de uma infância de magma 
calcinado. A água ficava negra, à sua volta; 
e os ramos das plantas submersas pelas chuvas 
primaveris abraçavam-nas, puxando-as num 
estertor de imagens. Tapei-as com o cobertor 
do verso; estendi-as na areia grossa 
da margem, vendo as cobras de água fugirem 
por entre os canaviais. Espreitei-lhes 
o sexo por onde escorria o líquido branco 
de um início. Pude dizer-lhes que as amava, 
abraçando-as, como se estivessem vivas; e 
ouvi um restolhar de crianças por entre 
os arbustos, repetindo-me as frases com uma 
entoação de riso. Onde estão essas mulheres? 
Em que leito de rio dorme os seus corpos, 
que os meus dedos procuram num gesto 
vago de inquietação? Navego contra a corrente; 
procuro a fonte, o silêncio frio de uma génese.


Nuno Júdice

Moki






O Poeta


Trabalha agora na importação 
e exportação. Importa 
metáforas, exporta alegorias. 
Podia ser um trabalhador 
por conta própria, 
um desses que preenche 
cadernos de folha azul com 
números 
de deve e haver. De facto, o que 
deve são palavras; e o que tem 
é esse vazio de frases que lhe 
acontece quando se encosta 
ao vidro, no inverno, e a chuva cai 
do outro lado. Então, pensa 
que poderia importar o sol 
e exportar as nuvens. 
Poderia ser 
um trabalhador do tempo. Mas, 
de certo modo, a sua 
prática confunde-se com a de um 
escultor do movimento. Fere, 
com a pedra do instante, o que 
passa a caminho 
da eternidade; 
suspende o gesto que sonha o céu; 
e fixa, na dureza da noite, 
o bater de asas, o azul, a sábia 
interrupção da morte.

Nuno Júdice

Moki






A Vida


A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua 
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam 
quando não se espera o atraso na preocupação 
dos teus olhos, e as nuvens que caíram 
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações 
a abrir-se para dentro e para fora 
dos sentidos que nada têm a ver com círculos, 
quadrados, rectângulos, nas linhas 
rectas e paralelas que se cruzam com as 
linhas da mão; 

a vida que traz consigo as emoções e os acasos, 
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram 
e dos encontros que sempre se soube que 
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com 
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo 
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada, 
sob a luz indecisa que apenas mostra 
as paredes nuas, de manchas húmidas 
no gesso da memória; 

a vida feita dos seus 
corpos obscuros e das suas palavras 
próximas. 


Nuno Júdice,
in "Teoria Geral do Sentimento"

Moki









A Origem do Mundo


De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra, 
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com 
a névoa da madrugada. O mundo, então, 
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está 
por baixo da terra; e as raízes sobem 
numa direcção invisível. De dentro 
de casa, porém, um cheiro a café chama 
por mim: como se alguém me dissesse 
que é preciso acordar, uma segunda vez, 
para que as raízes cresçam por dentro da 
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul. 

Nuno Júdice,
in "Meditação sobre Ruínas"