Bellor








Bellor









MECANISMOS


Havia um azul sereno
naquele roxo florindo,
o jardim dava no tempo
e o tempo passava rindo.

É tudo de que me lembro.
Quase nada do que sinto.
Deu-se a flor ao pensamento
entre a memória e o instinto.

O mais é aquilo que invento,
as músicas que mal digo,
orvalhos que ficam sendo
daquele jardim antigo.



Bruno Tolentino

Bellor








Segundo Movimento




Mas vem o amor, o amor que faz tão doce
o travo em que circula à flor do instante,
e entre resíduos vai como se fosse
suficiente, plácido e constante...
Mas se é amor é muito mais cortante
e em lâmina tão leve disfarçou-se
que por melhor alar seu golpe pôs
cintilações de ganho em cada instante.
E a alma se insurge, cobra a amor que abrande
seu ginete malsão tonto de posse,
esse peso de corpo que a alma torce
e não doma, esse breve, esse bastante
soluço da vontade no imperfeito —
mas a alma cede, a alma sucumbe ao peito...


Bruno Tolentino

Bellor






O ESPÍRITO DA LETRA
 (Um poema de "A balada do cárcere") 


Ao pé da letra agora, em minha vida
há a morte e uma mulher... E a letra dela,
a primeira, me busca e me martela
ouvido adentro a mesma despedida

outra vez e outra vez, sempre espremida
entre as vogais do amor... Mas como vê-la
sem exumar uma vez mais a estrela
que há anos-luz se esbate sem saída,

sem prazo de morrer na luz que treme?!
O mostro que eu matei deixou-me a marca
suas pernas abertas ante a Parca

aparecem-me em tudo: é a letra M
a da Medusa que eu amei, a barca
sem amarras, sem remos e sem leme...


Bruno Tolentino

Bellor






Os Deuses de Hoje
Segundo soneto 


É preciso que a música aparente
no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro

e fazedor. O vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.

Deus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compêndio


de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos
foi limando, aguçando o que escutara. 


Bruno Tolentino

Bellor






In passim


Tudo vai-se acabando, tudo passa
do que é ao que era; é tudo mais
ou menos uns vestígios de fumaça
no espaço do que deixas para trás.

E tudo o que deixaste ou deixarás
de manso ou de repente, sem que faça
diferença nenhuma no fugaz,
é assim como a garoa na vidraça:

intimações de lágrima delida.
Não valeu chorar nada. Nem te atrevas
a lamentar-te à porta da saída,

pois pouco importa a vida como a levas,
que ela te leva a ti, de despedida
em despedida, a uma lição de trevas.


Bruno Tolentino

 (Bruno Tolentino. O mundo como Ideia. Editora Globo: 2002)

Bellor





O Duo Doloroso



V
Difícil o vazio. Mais difícil
entre as quatro paredes do intelecto.
Ali, entre os sentidos, sob o teto
e o solo onde começa o precipício,


o vôo, impertinente, tinha início
a todo instante e nunca era direto,
era oblíquo: ora o gozo era suplício,
ora o suplício mesmo era dileto...


O abismo era metódico, seu método
audaz, mas um se foi e outro esvaiu-se
como mais um suspiro sem remédio.


Já o vazio, o mais límpido exercício,
era um puro palácio aritmético...
Mas e a vida? Ah, a vida era esse vício!




Bruno Tolentino
(1940-2007)
Do livro As Horas de Katharina (Rio de Janeiro: Cia. das Letras,1994. p. 154)

Bellor






Camus foi meu pior entusiasmo,
Claudel minha melhor desilusão,
Rimbaud a minha própria confusão
e Baudelaire o meu primeiro orgasmo.
Mallarmé me deixava um tanto pasmo,
mas fiz minha primeira comunhão
com Bernanos, achando Gide um asno,
Proust o gênio perverso da emoção
e Sartre um ressentido. Mauriac
me dava sustos, mas foi Julien Green
quem me tirou do sério e pôs o spleen
do inefável em mim; tive um ataque
quando li Mont Cinère e Leviathan,
minhas flores do mal para amanhã...



Bruno Tolentino

Bellor






"Estrela-do-mar"


Deram-me, quando criança,
uma estrela-do-mar,
e eu guardei dela a esperança
de durar

seca, ao longe, arrancada
também ao meu país
natural, a raiz
apenas, sem mais nada

que houvesse sido dela.
E vim parar aqui,
uma estrela
do mar, longe de tudo o que perdi.

mas não deu certo:
a coisa inanimada,
longe ou perto,
tardinha ou madrugada,

é sempre igual a si.
A criatura não.
O ser é uma emoção.
Eu sou feita de tudo o que senti.


Bruno Tolentino

Bellor






O VERME

         O coração, enfermo porque vive
do que morre,debruça-se à janela,
vê a luz desertando-o no declive
entre a vida e a paixão do ser por ela,
         e comovido vai compor a tela
em que a reduz para contê-la. Eu tive
essa mesma ilusão, compus a bela
equação passional da mente livre
         e pus meu coração nesse vazio.
Mas falhei. Ele nunca permitiu
o oásis ilusório na epiderme
         sensível do real. Eu tinha um verme
no coração, que foi roendo o fio
da ilusão e acabou por socorrer-me.


Bruno Tolentino

     Extraídos de 41 POETAS DO RIO, org. Moacyr Félix.  Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998.  514 p.

Bellor







FLAUTIM



Guardaremos juntos
os acertos, breves,
os enganos, fundos,

e aquele remoto
amparar de parcos,
altivos escolhos.

Cairão o signo
e a secreta cinza
desse ardente enigma.

Não lamentaremos
mais que o desencontro
dos humanos termos,

a rápida marca
que o passado imprime
na face, na máscara,

e os puros despojos
que às vezes são versos
e sempre são ossos.

Não diremos nada
dos velhos desejos
que a memória abraça,

sem qualquer palavra
não recordaremos
o que nos pesava,

mas apenas isso
que nos pese ainda:
ter vindo, ter sido.



Bruno Tolentino

Bellor


BELLOR

1911 - 2000

Um artista misterioso que sempre apresenta uma arte plena, extraordinariamente controlada. O homem que se esconde por trás desse nome, assumido com tons de alquimia, é uma pessoa muito reservada que recusa o triunfalismo.  Não se trata de timidez, mas de uma necessidade de extricar-se da rotina diária para alcançar sua energia e poderes criativos. Apenas ele pode controlar sua força criativa e traçar uma qualidade pictórica, a partir de sua dominação interna, que tende à perfeição.
A inspiração de Bellor parece concordar com o questionamento mental dos surrealistas. Seu trabalho é frequentemente definido como suplementar ao de Magritte, Delvaux ou Labisse. Esta imagem é simples demais para ser completa. Bellor não tenta domar a busca impossível da mente tangível, mas perseguir a realidade total de uma fração do Universo. Um visionário do que é sensível, ele permanence imensamente atraído à qualidade da busca. Existe um velho conhecimento em sua pintura que, longe de fazer um pastiche dos mestres flamencos do século XV e início do XVI, penetra, com mágica precisão, o núcleo de sua necessidade de pintar. O resultado desta operação é um ressurgimento, um tipo de comunicação entre referências de tempos que mudaram e as necessidades de artistas criativos atualmente. O elo é muito forte entre a impressionantre elaboração de pintores como Van Eyck, Van der Weiden, e este homem hoje, que tenta convergir uma íntima atemporalidade.
A reconhecida fragilidade de um equilíbrio nos personagens de Bellor cruza a fronteira que separa a vida do além. A parcela do sagrado é, assim, intensa, espalhando seus mistérios por meio de discreta transparência. Repousa no amor ao corpo, por suas encarnações cor de ambar, onde o brilho trabalha como carícias. Como o culto à mulher em formas hieráticas, que parece vir de templos milenares.








Por que escrevo (excerto)



Digamos que escrevo para tentar separar
o mundo-como-tal do mundo-como-idéia.
Claro? Bem, talvez tenha outras motivações
menos conscientes, mas não tenho melhor
justificativa para exercer um ofício tão
perigoso... Imaginar-se autor parece-me
tamanha petulância que desde que me
entendo tento fingir que sirvo para alguma
coisa!

*

Isto posto, que se atente bem: poeta não é
maître à penser e jamais pretendi que
escavo e escrevo para tentar configurar
mais uma teoria, antes o faço de modo a
testemunhar de uma resistência a tentações
desse tipo, de que tampouco fui poupado.
Mas não complico mais a coisa: confesso
ao leitor que não sei porque inventei de
ser escritor. A não ser que o que ficou
dito acima faça algum sentido...

Bruno Tolentino

Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino nasceu no Rio de Janeiro em 1940. Filho de família tradicional deixou o Brasil no ano do golpe militar (1964) para viver na Europa, onde morou 30 anos. Um ano antes, publicou seu primeiro livro de poemas, "Anulação e outros reparos", que recebeu o Prêmio Revelação de Autor. No júri, nomes como de Manuel Bandeira e Lêdo Ivo.
Por 11 anos, Bruno ensinou literatura em Oxford e também foi professor em Essex. Publicou livros de poesia em inglês e francês. Autor de extensa obra, em 1994, lançou no Brasil "As horas de Katharina", que recebeu o prêmio Jabuti, e, em 1995, "Os deuses de hoje" e "Os sapos de ontem" (polêmico ensaio contra o Concretismo).
No ano seguinte, sairia "A balada do cárcere", que recebeu o prêmio Cruz e Sousa. Um de seus últimos trabalhos, "O mundo como idéia" reúne 40 anos de sua produção poética. A obra foi publicada pela Editora Globo em 2002 e ganhou o prêmio Jabuti no ano seguinte.
Tolentino recebeu elogios de importantes escritores europeus como W. H. Auden, Yves Bonnefoy, Giuseppe Ungaretti, Saint-John Perse e Jean Starobinski.
Sua última obra publicada é "A imitação do amanhecer", livro que reúne 539 sonetos escritos ao longo de 26 anos, entre 1979 e 1994. No Brasil, sua obra foi reconhecida por Antônio Houaiss e João Cabral de Melo Neto.