Jean Bailly

Jean Bailly









Finais de ano

Finais de ano são melancólicos
Neles retomamos lembranças,
Poesias, saudades.

Vamos catando os caquinhos que ficaram pelos meses
Juntamos um pouquinho a cada e de cada dia
E sempre sobra ou falta alguma coisa

Não deveria existir final de ano
Mães também não deveriam morrer
E a chuva nunca deve cair quando estamos na rua

Aos poucos percebemos que a vida é a finitude
Um caminhar constante para ela. Sem interrupções
Umas puxam aqui e ali e outras colocam coisa lá e acolá

Mas os finais de ano devem ser assim mesmo
Tal como a vida o tempo e o espaço têm o fim
E louvo aqueles que encontram alegrias nas festas

Acho tudo tão hipócrita, fingido, ostentatório e inútil
Uma obrigação de feliz repousa sobre ombros cansados
E não consigo ser solidário

Prefiro ser o "solitário", encerrado em minha companhia
É porque estou ficando velho como o velho do asilo
E, tal como o ano, vejo que o meu fim também se aproxima

Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly









Livro novo

Meu livro chegou pelo correio
Demorou ele e ela
Encontrei ela e ele
Nas páginas que ia passando
Abracei cada perna, cada pedacinho do pé, beijei as mãos
Toquei cada detalhe das folhas antes entre páginas
Beijei as beiradinhas do livro e tateei as covinhas da costura
Senti o cheiro bom da coisa nova
Passei paulatinamente as pontas dos dedos nas páginas
Aproveitei cada detalhe
Senti as palavras e o peso do conteúdo
Leio sem parar e devagar
Ler é vício
Ela é outro
E a cada capítulo sinto que vou crescendo
No final estou diminuído
Infeliz porque um livro acabou
Mas perseverante à espera do novo que vai chegar.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly








Porcelana

Sua pele é uma porcelana sem lugar
Cresço quando sua imagem na retina vem repousar
Lentamente suas roupas caindo a vejo se entregar

Uma arquitetura se coloca em minha frente a balançar
Respiro fundo, pois não sinto o ar
Em minha frente ela está a flutuar

Jamais poderia pensar que tão bela e torneada Deus a fez para mostrar
Decerto se observasse com clareza Ele a iria desejar
Não se arriscaria a colocá-la no mundo onde poucos têm lugar

O corpo nu na noite se movimenta a clarear
Um sorriso solto no perfil agride por brilhar
Ao se recompor é mais bela que o tecido que veio a tirar

Linda, linda aparece como deusa vestida impossível de não olhar.
Uma imagem difícil de imaginar
A Porcelana como escultura fina e lisa a revelar.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly









Espelho do que sou

Não sei o porque de não gostar do espelho
Devo no fundo desse abismo me odiar
Talvez nada merecer
Conquistar

Vira e mexe um corvo teima em posar nos meus duros ombros
Fico meio de lado e as costas doem
Acabo me achando mais feio do que sou
E quebrar o espelho seria uma saída meio infantil

Dentro de mim eu grito
Um choro, por vezes, alto está no meu fígado
E uma trombeta gigante berra no meu peito
Que peso é esse que carrego?

Em qual parte de mim posso encontrar algo?
Não sei e não tenho ciência se desejo algo encontrar
Posso não reconhecer ou não gostar do que sou
E viver para sempre procurando-me nesse espelho.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly









Jardins suspensos

Jardins suspensos na noite calada que a lua teima a queimar
Uma flor ferida e sangrando está no meu peito
Quase não consigo respirar nesse ar seco
As costelas andam batendo uma na outra
E uma pequena taquicardia arrepia meu corpo

E essa lua cheia dela mesma
E ela cheia se si mesma
E eu cansado de mim mesmo

Minha saudade é uma lágrima que cai em fogo
Olhos de limão verde a arder na inquietude
Corpo cansado e amassado
Ferido e quebrantado no fim do dia que não desejo ver

E ela neste sorriso que rasga minha alma
Iluminando a rua, o corredor, a sala
Cheia dela e vazia de mim


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly








Não deu certo


E ela chorou porque não percebeu sua progenitora.
As lágrimas caíam como bala de canhão
Um suspiro profundo arranhava a traquéia já fraca
e os olhos já inchados traziam lembranças de outrora.
O sofrimento tem destas coisas:
a verdade nua como a mulher da Playboy
pornográfica como as mulheres da Sex
fêmeas que não envelhecem
trocadas com o tempo e com o vento das modas que andam por aí
sofrimentos são assim: passam e voltam com tanta força que balançamos
por vezes nos acostumamos com eles
até nos equilibrarmos...
depois eles voltam mais fortes e envenenam a alma
um pingo de chuva é o bastante para fazer chorar
até a barata preta que morre é motivo de intenso desespero e desconforto.
Imagine a persona que não sai dos seus pensamentos?
A vida é isso: um conjunto inevitável de sofrimentos
Sofrimentos inevitáveis de pedra que persistimos em manter
Realmente! O ser humano é um bicho que não deu certo.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly








O mel
As abelhas são encantadas
Mas o que elas fazem?
Fazem o mel. E levam lá para a Lua
Mas por que a Lua é branca?
Por causa do algodão
A abelha posa em cima e vai flutuando até lá
Você está vendo só o lado do algodão
E o mel? Perguntou a criança:
Deus guarda do lado de lá para os anjos.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly









Simples assim

- Minha mãe disse que eu nasci em uma tarde de chuva e cheia de trovões.
- Talvez por isso que sinto esse medo meio esquisito dentro de mim.
- Mamãe disse que uma cegonha gigante me trouxe em meio de muito amor.
- Mas como?
- Sei lá! Foi o que ela disse.
- A cegonha não ia me agüentar. O pessoal me acha muito gordinho e pesado.
- Me chamaram outro dia de Jô Soares.
- Eu não acho. Você é fofinho, igualzinho ao algodão doce.
- Você acha?
- Acho.
- Se eu te pedir uma coisa, você me dá?
- Qualquer coisa. Pode pedir!
- Pode mesmo?
- Pode. Qualquer coisa.
- Aceita minha borracha nova em troca do seu lápis vermelho?
- Claro que sim. Tome.
- Obrigado.
- De nada.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly








Dias de canário

Ele sempre fora livre
tinha olhos claros do sol
com seu canto hipnotizava o observador
peito de ferro,
sempre pronto a gritar pelo canto a ser roubado.

Acorrentado ficou tal como canário da terra preso
triste
sem asas
horizontes
montes
rios
e telhados.

A liberdade era tudo
o nada
depois virou gaiola de ferro
o canário calou
ficou cansado
canta menos
come alpiste
não sente o cheiro da chuva
tampouco sabe se ela caiu.

Vê tudo de longe
até seus iguais
se bate na gaiola
chora cantando
canta chorando
e pula de um lugar a outro
sem fim
sem mais
até que o dia passa
e a lembrança
os sonhos
da liberdade não voltam
e começa tudo de novo
piu, piu, piu.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly







Vulnerabilidade


Fiquei sabendo que ela caiu. Estava indo devagar para a casa
Tomei um susto tão grande que meu estômago chegou a amargar a língua
Um refluxo violento esquentou minha laringe vermelha
E minha garganta fechou para o ar frio desse inverno.

Ela caiu e não soube o como e o porque
Sua caminhada ao chão foi longa e dolorosa
Não é bom quando os bons iniciam a caída
Lembro-me de espadas em crânios abertos no ar frio de inverno

O cair sempre é vergonhoso para o voyerismo social
O caído, e por vezes machucado, é tomado pela penumbra da vergonha
O sangue fica feroz nas veias e pequenos derrames cínicos invadem os olhos
A adrenalina auxilia, mas nada que esquente o ar frio desse inverno.

A senhora branquinha e linda caiu como uma pluma
Uma nuvem foi ao chão como uma pedra vulnerável
E sua agonia tremeu o meu espírito gelado
O medo da finitude é como a perda da pessoa amada no ar frio desse inverno.

Passou-me na mente seu semblante tranqüilo, alegre e suave
Escutei sua voz pausada, mansa e gentil
Ela faz falta em minha simples vida de ser humano
Sinto saudades do dia que andamos na praça em meio ao ar frio desse inverno.


Lúcio Alves de Barros

Jean Bailly


Jean Bailly
Nasceu na Argélia 29.11.1940 . Viveu em Orleães de 1943 até 1950, Em Paris até 1966 e mais tarde em Loiret.
Adquiri a certeza que a pintura seria um dia minha única atividade depois do choque sofrido durante a primeira retrospectiva de George de la Tour, em 1972, em Paris. As personagens de meus quadros substituíram pouco a pouco os objetos de minhas naturezas mortas. Desde então tenho frequentemente a impressão de ilustrar com minha pintura os contos ou versos que não conheço; quer estes já tenham sido escritos ou ainda por ser. Meu objetivo é unicamente pintar, e não escrever.
Nunca então procurei saber o que bem se podia passar antes ou depois desses “pedaços de história”, mesmo se de tempos em tempos tivesse minha pequena ideia sobre a questão. Eu lhe sugiro descobrir um outro caminho:
Invente o seu próprio caminho. Obrigado por ser o mais criativo possível.”







Liberdade

Num dia destes, com chuva ou sol
ainda corto meus cabelos e deixo o meu aquário todo careca,
arranco os pelos do meu corpo só para a pele ficar lisinha como o asfalto.
Perco o pudor e fico tal como as prostitutas em um bordel.
Retorno à minha natureza e deixo que observem minha genitália gigante
Encarno de vez o que todos desejam
e materializo o que andaram esquecendo neste cotidiano enlouquecedor:
a liberdade

Dedicado ao Dia Mundial da Luta Antimanicomial (18/05/2010)


Lúcio Alves de Barros



Lúcio Alves de Barros
Belo Horizonte/MG – Brasil


* Lúcio Alves de Barros é licenciado e bacharel em
 
Ciências Sociais pela UFJF, mestre em Sociologia e doutor
em Ciências Humanas: Sociologia e Política pela UFMG.
 
É autor do livro “Fordismo: origens e metamorfoses”.
 
Piracicaba, SP: Ed. UNIMEP (Universidade Metodista
de Piracicaba), 2004, organizador do livro
 
“Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006,
 
co-autor do livro de poesias, “Das emoções frágeis e efêmeras”.
 
Belo Horizonte: Ed. ASA, 2006 e organizador da obra
 
“Mulher, política e sociedade”. Brumadinho: Ed. ASA, 2009.

Lúcio Alves de Barros

Publicado no Recanto das Letras em 13/09/2009
 Código do texto: T1808312