Colette Calascione










Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não,
creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado


Colette Calascione










VEROSSÍMIL

Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
"Canta alto, espevita as palavras bem."
Eu levantava vôo rua acima.

Adélia Prado

Colette Calascione









Direitos humanos


Sei que Deus mora em mim

como sua melhor casa.
sou sua paisagem,
sua retorta alquímica

e para sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha.


Adélia Prado




Colette Calascione








AMOR FEINHO

"Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho."

Adélia Prado

Colette Calascione






Mulher ao cair da tarde

Ó Deus, não me castigue se falo
minha vida foi tão bonita!
Somos humanos,
nossos verbos têm tempos,

não são como o Vosso, eterno.

Adélia Prado




Colette Calascione






O VESTIDO

No armário do meu quarto escondo de tempo e traça
meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas
à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem a minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.

Adélia Prado

Colette Calascione


Colette Calascione





Parâmetro


Deus é mais belo que eu.

E não é jovem.

Isto sim, é consolo.


Adélia Prado


Colette Calascione





Explicação de poesia sem ninguém pedir

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,

mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,

atravessou minha vida,

virou só sentimento.

Adélia Prado


Colette Calascione





Exausto

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar

a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.

Semente.

Muito mais que raízes.


Adélia Prado


Colette Calascione







Ensinamento

Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite,
o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café ,
deixou tacho no fogo com água quente.

Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.


Adélia Prado


Colette Calascione



Impressionista


Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

Adélia Prado