Sergio Niculitcheff - nico@netpoint.com.br



Poemas da amiga


A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porque, te percebi.


Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.


Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.


Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.


No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.


Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.


O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...



Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...


As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

Mário de Andrade

Tarsila do Amaral




Tarsila do Amaral




Canto de Regresso à Patria
Oswald de Andrade


Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os pássaros daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo

Tarsila do Amaral



Ode ao burguês


Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!


Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!


Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!


Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!"


Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!


Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!


Fora! Fu! Fora o bom burguês!...




Mário de Andrade

Tarsila do Amaral





O cortejo
Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! "Bom giorno, caro."

Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

Estes homens de São Paulo,
Todos iguais e desiguais,
Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
Parecem-me uns macacos, uns macacos.

Mário de Andrade

Philip Jackson




BRISA DO TEMPO

Primeiro era um banco
Frente ao mar calmo.
Sentados nele, calmos,
Dois marinheiros,
Que dividiam a mesma alma,
Falavam de amores passados
Que nunca passaram.

O mais velho tinha um porto em cada amor,
O mais moço tinha um amor em cada porto.

Havia neles uma solidão
Que o mar não continha.

No dia seguinte era um banco
Impregnado de vazios,
E um navio à procura de um porto
Que pudesse lhes conter a alma.


Oswaldo Antônio Begiato



INCERTEZA

Oswaldo Antônio Begiato

pela manhã o sol amarga a boca
enquanto o galo,
alheio à clarividência,
canta seu lamento imutável

sobre a mesa o café está frio
o pão perdeu a leveza e o significado

o girassol, faz tempo,
continua só e abandonado à beira do rio

olhai com perdão para esse girassol
que só e único se avoluma amarelo
de um amarelo intenso
bem mais amarelo
bem mais intenso
do que se pode permitir a uma flor
que se definha à beira do rio

ele não tem coragem de morrer
e não tem forças para viver

o que será do amanhã
se logo pela manhã
o sol deixa a boca amarga?

Philip Jackson




BAILARINO
Oswaldo Antônio Begiato

Minha mãe tinha uma caixinha de música
onde uma pequenina bailarina cor-de-rosa
feita de porcelana frágil,
cabelos presos na cabeça
e usando sapatilhas transparentes,
enquanto tocava Brahms Lullaby,
dançava,
dançava,
dançava...
...diante de um espelho que a multiplicava.


Eu menino,
com olhos de bailarino
feito com uma alma frágil,
com a cabeça na lua
e os pés nas nuvens,
olhava,
olhava,
olhava ...
...aquela ternura encantadora que me dividia.

Embriagado por sonhos apaixonantes
não percebia o tempo passar
por entre o bailar da bailarina que não crescia
e o bater de meu coração inocente que amadurecia.

Encantado, fiquei cronicamente doente de amor;
e até hoje tentam me curar essa doença,
essa doce e meiga doença.


Mas eu não quero ficar curado.

Oswaldo Antônio Begiato

Philip Jackson



MEUS DIAS
Oswaldo Antônio Begiato


No dia em que a Felicidade bater
À porta da frente de minhas constâncias
Eu já não estarei mais dentro:
Terei saído de mudança
Pela porta dos fundos.

Mas Ela encontrará tudo arranjado:
O chão limpo e encerado,
A louça lavada e guardada,
As camas perfumadas e estendidas,
As coisas alinhadas e sem pó,
A alma livre e serenada.

Esquecerei então que um dia fui
Pedra selvagem e estrela cadente,
Carvão e diamante,
Esterco e pétala,
Corcunda e asas.

Serei uma gota de orvalho cristalizada
Que o destino quis como pingente
Adornando a garganta da eternidade.


Antônio Oswaldo de Begiato

Philip Jackson




CHEGANÇA
Oswaldo Antônio Begiato

Eu te trouxe de presente um olhar.
Um olhar que achei escondido entre as pedras do rosário
E que brincava de encantamento com a Virgem Maria.

Eu te trouxe de presente um olhar.
Desses que não descuidam de nenhum movimento
E que de tão atentos se tornam anjos da guarda.


Eu te trouxe de presente um olhar.
Desses que contém dentro de si tamanha proteção
Que os olhos deles parecem um mar de cheganças.

Eu te trouxe de presente um olhar.
Desses que revelam uma entrega tão desmedida
Que se tornam portas de entrada de todas as abnegações.

Eu te trouxe de presente um olhar.
Apenas um olhar. Nada mais, além do meu servo olhar.
Oswaldo Antônio Begiato

Philip Jackson