Timothy Tyler

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OUTRO RETRATO


O laço de fita
que prende os cabelos
da moça do retrato
mais parece uma borboleta.

Um ventinho qualquer
e sai voando
rumo a outra vida
além do retrato.

Uma vida onde os maridos
nunca chegam tarde
com um gosto amargo
na boca.


José Paulo Paes

Timothy Tyler







O ALUNO


São meus todos os versos já cantados;
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.

Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.

São meus também, os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.

Drummond me empresta sempre o seu bigode,
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.


José Paulo Paes

Timothy Tyler






AO ESPELHO

O que mais me aproveita
em nosso tão freqüente
comércio é a tua
pedagogia de avessos.
Fazem-se em nós defeitos
as virtudes que ensinas:
o brilho de superfície
a profundidade mentirosa
o existir apenas
no reflexo alheio.
No entanto, sem ti
sequer nos saberíamos
o outro de um outro
outro por sua vez
de algum outro, em infinito
corredor de espelhos.
Isso até o último
vazio de toda imagem
espelho de um si mesmo
anterior, posterior
a tudo, isto é, nada.

José Paulo Paes



Timothy Tyler






CANÇÃO DO ADOLESCENTE


Se mais bem olhardes
notareis que as rugas
umas são postiças
outras literárias.
Notareis ainda
o que mais escondo:
a descontinuidade
do meu corpo híbrido.
Quando corto a rua
para me ocultar
as mulheres riem
(sempre tão agudas!)
do meu pobre corpo.
Que força macabra
misturou pedaços
de criança e homem
para me criar?
Se quereis salvar-me
desta anatomia,
batizai-me depressa
com as inefáveis
as assustadoras
águas do mundo.


José Paulo Paes

Timothy Tyler




 

Anatomia do monólogo


ser ou não ser?
er ou não er?
r ou não r?
ou não?
onã? 


José Paulo Paes




Timothy Tyler






GRAFITO


neste lugar solitário
o homem toda a manhã
tem o porte estatuário
de um pensador de Rodin

neste lugar solitário
extravasa sem sursis
como um confessionário
o mais íntimo de si

neste lugar solitário
arúspice desentranha
o aflito vocabulário
de suas próprias entranhas

neste lugar solitário
faz a conta doída:
em lançamentos diários
a soma de sua vida

José Paulo Paes


Timothy Tyler







Passarinho fofoqueiro


Um passarinho me contou 
que a ostra é muito fechada, 
que a cobra é muito enrolada, 
que a arara é uma cabeça oca, 
e que o leão marinho e a foca.. 
xô , passarinho! chega de fofoca!

Acima de qualquer suspeita


José Paulo Paes

Timothy Tyler






À TINTA DE ESCREVER


Ao teu azul fidalgo mortifica
registrar a notícia, escrever
o bilhete, assinar a promissória
esses filhos do momento. Sonhos

José Paulo Paes

Timothy Tyler




Madrigal


Meu amor é simples, Dora,
Como a água e o pão.
Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.

L'Affaire Sardinha
O bispo ensinou ao bugre
Que pão não é pão, mas Deus
Presente na eucaristia.

E como um dia faltasse
Pão do bugre, ele comeu
O bispo, eucaristicamente.


José Paulo Paes



Timothy Tyler





Poética


Não sei palavras dúbias. Meu sermão
Chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão.

Com duas mãos fraternas, cumplicio
A ilha prometida à proa do navio.

A posse é-me aventura sem sentido.
56 compreendo o pão se dividido.

Não brinco de juiz, não me disfarço em réu.
Aceito meu inferno, mas falo do meu céu


José Paulo Paes