Jean-Claude Desplanques







Jean-Claude Desplanques




A uma mulher


Não tendo podido te criar
Nem tendo sido criado por ti
Eu me vingo do destino enxertando-me no teu ser.
Jamais conseguirás te libertar de mim
Porque eu te sitiei com a chama do amor,
Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus
A fim de extrair dele o segredo da ternura.
Todos os que te olham pensam logo em mim,
Todos os que me olham pensam logo em ti.
Eu sou tua cicatriz que nunca se há de fechar.
Eu te perseguirei até depois da minha morte
E virei a ti no murmúrio dos ventos, no lamento das ondas,
Na angústia e na alegria dos poetas meus sucessores,
Nas almas grandes limitadas pelo físico.
Sentado nas nuvens eternas eu te esperarei
E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.


Murilo Mendes

Jean-Claude Desplanques






MULHER


Mulher
Ora opaca ora translúcida
Submarina ou vegetal
Assumes todas as formas,
Desposas o movimento.

Sinal de contradição
Posto um dia neste mundo
Tu és o quinto elemento
Agregado pelo poeta
Que te ama e te assimila
E é bebido por ti.

Tu és na verdade, mulher,
Construção e destruição.


Murilo Mendes

Jean-Claude Desplanques


Jean-Claude Desplanques


Antigo aluno da escola de Belas Artes, Jean-Claude Desplanques se consagra na pintura depois de 1960. Nascido na Normandia em 1936, apaixonou-se pelo desenho com a idade de oito anos. Suas criaturas míticas, seus personagens misteriosos e sublimes nos mergulham em seu universo pictórico rico e fantástico, muitas vezes teatral, onde a beleza reina.







Canção do exílio


Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.


Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!


Murilo Mendes
In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959


Murilo Monteiro Mendes, nasceu dia 13 de maio de 1901, em Juiz Fora, Minas Gerais. Aos nove anos diz ter tido uma revelação poética ao assistir a passagem do cometa Halley. Em 1917, uma nova revelação: fugiu do colégio em Niterói para assistir, no Rio de Janeiro, às apresentações do bailarino Nijinski. Muda-se definitivamente para o Rio em 1920. Os anos de 1924 a 1929 foram dedicados à formação cultural e à luta contra a instabilidade profissional. Foi arquivista no Ministério da Fazenda e funcionário do Banco Mercantil. Nesse período publica poemas em revistas modernistas como "Verde" e "Revista de Antropofagia". Seu primeiro livro, "Poemas", é publicado em 1930. É agraciado com o Prêmio Graça Aranha. Converte-se ao catolicismo em 1934. Torna-se inspetor de ensino em 1935. Em 1940, conhece Maria da Saudade Cortesão, com quem se casaria em 1947. De 1953 a 1955 percorreu diversos países da Europa, divulgando, em conferências, a cultura brasileira. Em 1957, se estabeleceu em Roma, onde lecionou Literatura Brasileira. Faleceu, em Lisboa, Portugal, em 13 de agosto de 1975, e deixou inéditas várias obras.


Jean-Claude Desplanques





CHORO DO POETA ATUAL


Deram-me um corpo, só um!
Para suportar calado
Tantas almas desunidas
Que esbarram umas nas outras,
De tantas idades diversas;
Uma nasceu muito antes
De eu aparecer no mundo,
Outra nasceu com este corpo,
Outra está nascendo agora,
Há outras, nem sei direito,
São minhas filhas naturais,
Deliram dentro de mim,
Querem mudar de lugar,
Cada uma quer uma coisa,
Nunca mais tenho sossego.
Ó Deus, se existis, juntai
Minhas almas desencontradas.


Murilo Mendes

Jean-Claude Desplanques




CERTO MAR


O mar não me quer,
O mar não sei por que me abomina,
O mar autárquico:
Ele me atira barbatanas e algas podres,
Destroços de manequins e papéis velhos,
Arrastando para longe barco e sereia.
O mar tem idéias singulares sobre mim,
Manda-me recados insolentes
Em garrafas há muito esquecidas e sujas.
Suprime de repente o veleiro de 1752
Que vinha beirando o cais.


Suprime o veleiro e um bando de fantasmas
- Eu bem sei -
Únicos, polidos, um quase nada solenes.
Não tolero mais este safado,
Nem mesmo o admito no outro mundo:
Felizmente a eternidade é límpida,
Sem praia e sem lamentos.
Hei de espiá-lo da Grande rosácea,
Hei de vê-lo um dia lá embaixo,
Inútil: espremida esponja, carcaça de canoa,
Avesso de fotografia.


Murilo Mendes
 (Parábola, in Poesias, 1959)

Jean-Claude Desplanques






POEMA ESSENCIALISTA


A madrugada de amor do primeiro homem
O retrato da minha mãe com um ano de idade
O filme descritivo do meu nascimento
A tarde da morte da última mulher
O desabamento das montanhas, o estancar dos rios
O descerrar das cortinas da eternidade
O encontro com Eva penteando os cabelos
O aperto de mão aos meus ascendentes
O fim da idéia de propriedade, carne, tempo
E a permanência no absoluto e no imutável.


Murilo Mendes


Jean-Claude Desplanques




PARÁBOLA


É muito difícil esconder o amor
A poesia sopra onde quer
O poeta no meio da revolução
Pára, aponta uma mulher branca,
E diz alguma coisa sobre o Grande enigma
Os sábios sonham
Que estão mudando Deus de lugar.


Murilo Mendes

Jean-Claude Desplanques







METADE PÁSSARO


A mulher do fim do mundo

Dá de comer às roseiras,

Dá de beber às estátuas,

Dá de sonhar aos poetas.



A mulher do fim do mundo

Chama a luz com um assobio,

Faz a virgem virar pedra,

Cura a tempestade,

Desvia o curso dos sonhos,

Escreve cartas ao rio,

Me puxa do sono eterno

Para os seus braços que cantam.


Murilo Mendes

Jean-Claude Desplanques





A MARCHA DA HISTÓRIA 



Eu me encontrei no marco do horizonte

Onde as nuvens falam,

Onde os sonhos têm mãos e pés

E o mar é seduzido pelas sereias.

Eu me encontrei onde o real é fábula,

Onde o sol recebe a luz da lua,

Onde a música é pão de todo dia

E a criança aconselha-se com as flores.

Onde o homem e a mulher são um,

Onde espadas e granadas

Transformaram-se em charruas,

E onde se fundem verbo e ação.


Murilo Mendes

Jean-Claude Desplanques





O filho do século


Nunca mais andarei de bicicleta
Nem conversarei no portão
Com meninas de cabelos cacheados
Adeus valsa "Danúbio Azul”
Adeus tardes preguiçosas
Adeus cheiros do mundo sambas
Adeus puro amor
Atirei ao fogo a medalhinha da Virgem
Não tenho forças para gritar um grande grito
Cairei no chão do século vinte
Aguardem-me lá fora
As multidões famintas justiceiras
Sujeitos com gases venenosos
É a hora das barricadas
É a hora do fuzilamento, da raiva maior
Os vivos pedem vingança
Os mortos minerais vegetais pedem vingança
É a hora do protesto geral
É a hora dos vôos destruidores
É a hora das barricadas, dos fuzilamentos
Fomes desejos ânsias sonhos perdidos,
Misérias de todos os países uni-vos
Fogem a galope os anjos-aviões
Carregando o cálice da esperança
Tempo espaço firmes porque me abandonastes.


Murilo Mendes

Jean-Claude Desplanques