Lucas Kandl




Para as Festas da Agonia
Vi-te chegar, como havia
Sonhado já que chegasses:
Vinha teu vulto tão belo
Em teu cavalo amarelo,
Anjo meu, que, se me amasses,
Em teu cavalo eu partira
Sem saudade, pena, ou ira;
Teu cavalo, que amarraras
Ao tronco de minha glória
E pastava-me a memória
Feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
Angélico, onde meu leito
Me deixaste então fazer,
Que pude esquecer a cor
Dos olhos da Vida e a dor
Que o Sono vinha trazer.
Tão celeste foi a Festa,
Tão fino o Anjo, e a Besta
Onde montei tão serena,
Que posso, Damas, dizer-vos
E a vós, Senhores, tão servos
De outra Festa mais terrena —
Não morri de mala sorte,
Morri de amor pela Morte.
Mário Faustino
Lucas Kandl
SONETO ANTIGO
Esse estoque de amor que acumulei
Ninguém veio comprar a preço justo.
Preparei meu castelo para um rei
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo.
Meu tesouro amoroso há muito as traças
Comeram, secundadas por ladrões.
A luz abandonou as ondas lassas
De refletir um sol que só se põe
Sozinho. Agora vou por meus infernos
Sem fantasma buscar entre fantasmas.
E marcho contra o vento, sobre eternos
Desertos sem retorno, onde olharás
Mas sem o ver, estrela cega, o rastro
Que até aqui deixei, seguindo um astro.
Mário Faustino
Lucas Kandl



Divisamos assim o adolescente
Divisamos assim o adolescente,
A rir, desnudo, em praias impolutas.
Amado por um fauno sem presente
E sem passado, eternas prostitutas
Velam por seu sono. Assim, pendente
O rosto sobre um ombro, pelas grutas
Do tempo o contemplamos, refulgente
Segredo de uma concha sem volutas.
Infância e madureza o cortejavam,
Velhice vigilante o protegia.
E loucos e ladrões acalentavam
Seu sonho suave, até que um deus fendia
O céu, buscando arrebata-lo, enquanto
Durasse ainda aquele breve encanto.
Mário Faustino
Lucas Kandl


Legenda
No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se estendia a queda de uma lágrima
Das frondes dos heróis de cada dia.
Havia então mais sombra em nossa via.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.
Agora o bandoleiro brada e atira
Jorros de luz na fuga de meu dia —
e mudo sou para contar-te, amigo,
O reino, a lenda, a glória desse dia.
Mário Faustino (De O Homem e sua hora)
Lucas Kandl
Lá onde um velho corpo desfraldava
As trêmulas imagens de seus anos;
Onde imaturo corpo condenava
Ao canibal solar seus tenros anos;
Lá onde em cada corpo vi gravadas
Lápides eloqüentes de um passado
Ou de um futuro argüido pelos anos;
Lá cândidos leões alvijubados
Às brisas temporais se espedaçavam
Contra as salsas areias sibilantes;
Lá vi o pó do espaço em enrolando
Em turbilhões de peixes e presságios —
Pois na orla do mundo as delatantes
Sombras marinhas, vagas, me apontavam.
Mário Faustino
Lucas Kandl


Ego de Mona Kateudo
Dor, dor de minha alma, é madrugada
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
Noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminaste.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormido e claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria.
Mário Faustino
LUCAS KANDL





O mundo que venci deu-me um amor
O mundo que eu venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo.
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...
Mário Faustino