Alberto Pancorbo

Alberto Pancorbo






Poema da devastação


Há uma devastação 
 nas coisas e nos seres, 
 como se algum vulcão
 
 abrisse as sobrancelhas
 
 e ali, sobre esse chão,
 
 pousassem as inteiras
 
 angústias, solidões,
 
 passados desesperos
 
 e toda a condição
 
 de homem sem soleira,
 
 ventura tão curta,
 
 punição extrema.

Há uma devastação 
 nas águas e nos seres; 
 os peixes, com seus viços,
 
 revolvem-se no umbigo
 
 deste vulcão de escamas.

Há uma devastação 
 nas plantas e nos seres; 
 o homem recurvado
 
 com a pálpebra nos joelhos.
 
 As lavas soprarão,
 
 enquanto nós vivermos.
 


Carlos Nejar

Alberto Pancorbo









De como a terra e o homem se unem


 Fica a terra, passa o arado,
 mas o homem se desgasta;
 sangra o campo, pasce o gado,
 brota o vento de outro lado
 e a semente também brota.

Fica a terra, passa o arado
 e o trabalho é o que nos passa,
 como nome, como herança;
 fica a terra, a noite passa.

A semente nos consome,
 mas a terra se desgasta.

2.
Que será do novo homem
 sobre a terra que vergasta?
 Sangra a terra, pasce o gado
 e o trabalho é o que nos passa.

Vem o sol e cava a terra;
 a semente é como espada.
 Há uma noite que nos gera
 quando a noite é dissipada.

Vem a noite e cava a terra;
 vem a noite, é madrugada.

3.
O homem se desgasta,
 sopro misturado
 ao sopro rijo do arado.
 Vai cavando.

Madrugada sai da terra,
 como um corpo se entreabre
 para o orvalho e para o trigo.

O homem vai cavando,
 vai cavando a madrugada.


Carlos Nejar

Alberto Pancorbo










Lisura


Entras na morte, 
 como se entra em casa, 
 desvestindo a carne,
 
 pondo teus chinelos
 
 e pijama velho.

Entras na morte, 
 como alguém que parte
 
 para uma viagem:
 
 não se sabe o norte
 
 mas começa agora.

Entras na morte, 
 sem escuros,
 
 sem punhais ocultos
 
 sob o teu orgulho.

Entras na morte, 
 limpo
 
 de cuidados breves;
 
 como alguém que dorme
 
 na varanda enorme,
 
 entras na morte.
 


Carlos Nejar

Alberto Pancorbo










Clara onda


Este amor  em meadas e triciclos 
 que nunca se divide, confluindo 
 e torna noite este sapato findo
 
 e o firmamento, silencioso ciclo.

Este amor em meadas, infinito. 
 Em meadas de orvalho, desavindo, 
 em meadas e quedas, rugas, trincos
 
 e  rusgas, trinos, pios e sóis contritos.

Este amor me retece e configura. 
 Tem pressa de crescer, fogo calado. 
 Apenas queima, quando não se apura.

Parece interminável, quando tomba. 
 E só se apura, quando despertado. 
 Dissolvido me solve em clara onda.


Carlos Nejar

Alberto Pancorbo








Pedra-vento


O vento lavou as pedras, 
 mas ficaram as palavras. 
 O vento lavou as pedras
 
 com sabor de madrugada.

O vento lavou as noites, 
 mas ficaram as estrelas.

O vento lavou a noite 
 com água límpida e mansa. 
 Mas não lavou a salsugem.

O vento lavou as águas, 
 mas não lavou a inocência 
 que amadurece nas águas.

O vento lavou o vento.


Carlos Nejar


Alberto Pancorbo







Soneto aos Sapatos Quietos


Os pés dos sapatos juntos. 
 Hei-de calçá-los, soltos 
 e imensos, e talvez rotos,
 
 como dois velhos marujos.

Nunca terão o desgosto 
 que tive. Jamais o sujo 
 desconsolo: estando postos,
 
 como eu, em chãos defuntos.

Em vãos de flor, sem o riacho 
 de um pé a outro, entre guizos. 
 Não há demência ou fome.

Sapatos nos pés não comem. 
 Só dormem. Porém, descalço 
 pela alma, o paraíso.


Carlos Nejar

Alberto Pancorbo







AOS AMIGOS E INIMIGOS


De amigos e inimigos
fui servido,
agora estamos unidos,
atrelados ao degredo.

Nunca fui o escolhido
onde os deuses me puseram.
Nem sou deles, sou de mim
e dos íntimos infernos.

Não.
Não me entreguem aos mortos,
os filhos que me pariram
e plasmei com meus remorsos
no seu mágico convívio.

De amigo e inimigos
fui servido
e com tão finada vida
e alegados motivos,
que ao dar por eles, já partira
e quando dei por mim, não estava vivo.


Carlos Nejar
Donações, 1969.

Alberto Pancorbo







NOSSA SABEDORIA


Nossa sabedoria é a dos rios.
Não temos outra.
Persistir. Ir com os rios,
onda a onda.

Os peixes cruzarão nossos rostos vazios.
Intactos passaremos sob a correnteza
feita por nós e o nosso desespero.
Passaremos límpidos.

E nos moveremos,
rio dentro do rio,
corpo dentro do corpo,
como antigos veleiros.


Carlos Nejar
Árvore do Mundo, 1977

Alberto Pancorbo







Aqui ficam as coisas


Aqui ficam as coisas.

Amar é a mais alta constelação.

Os sapatos sem dono
tripulando
na correnteza-espaço
em que deitamos.

As minhas mãos telhado
no teu rosto de pombas.

Os corpos circulando
na varanda dos braços.

É a mais alta constelação.


Carlos Nejar