Willi Kissmer






Willi Kissmer




Poema Porrada



"Eu estou farto de muita coisa

não me transformarei em subúrbio

não serei uma válvula sonora

não serei paz

eu quero a destruição de tudo que é frágil:

cristãos fábricas palácios

juízes patrões e operários

uma noite destruída cobre os dois sexos

minha alma sapateia feito louca

um tiro de máuser atravessa o tímpano de

duas centopéias

o universo é cuspido pelo cu sangrento

de um Deus-Cadela

as vísceras se comovem

eu preciso dissipar o encanto do meu velho

esqueleto

eu preciso esquecer que existo"



Roberto Piva
Fragmento do "Poema Porrada"

Willi Kissmer






Minha alma escorre como em um rio de palavras. Sou uma metáfora que ressoa como um gemido de uma Fênix em pedaços. Há uma chama que consome minha imagem, meu reflexo e meu aroma. Estou perdido, sem memória possível, desaparecido e pulsando. Não há mais sóis nem templos de ilusão. Existo como um EU, que se reconstrói entre cacos e silêncio.


Roberto Piva

Willi Kissmer





A Piedade



Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
  
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
   luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
   aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
   cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
   bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
   estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
   pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
   que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
   pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
   asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
   dos meus sonhos


Roberto Piva
in Paranóia (1963)

Willi Kissmer





QUATRO POEMAS PIVIANOS

I


As mãos invisíveis dedilham a canção sinistra
vibrando as fibras nervosas da medula
Os dentes mastigam o sem fim de peripaques nostálgicos
enquanto o mistério corre pela rua em chamas.

Aonde andará o poeta de pijama que escorrega e cai,
enquanto distraído sonha um mundo de estrelas?
Já não há céu, nem solo firme. Silencie-me! Silencie-me!
Sigo as labaredas memoráveis dos dias de luto e melancolia.

Quero a forma perfeita, o beijo, o cheiro do Apolo ruivo.
Sei da impossibilidade das horas, da complementaridade ilusória.
Olho o monte de esterco apodrecendo na vidraça entreaberta.
Janelas, penhascos, arranhásseis e corpos voadores de pedra.

Se a noite persegue minha vida, deposito monstros no aquário.
Os peixes caminham no asfalto e as mulheres usam gravatas.
Minha alma, meu desejo, minha imobilidade. Apenas eu!
Danço a quimera dos solitários e o presságio dos carecas.

Um poema, um segmento refratário. Não sei de mim.
As idéias são espasmos, e as palavras, coisa inútil.
Seria senil e insano se acreditasse no amanhã.
Vivo esse segundo que se arrasta, devorando-me.



Roberto Piva

Willi Kissmer





II 



O estrangeiro da legião de insetos
arrancou o grito de cólera e loucura
da boca arreganhada, não percebida,
do paranóico que mora nos ciclones

A bailarina, uma mulher pálida,
engole o último pedaço de vidro
arrebentado com a explosão atômica
de meus sonhos avulsos transtornados.

O erotismo atrapalhado do anão
que não mais se agüenta neste intervalo
de memórias e areias, noite e chamas.
Diminuindo cada vez mais, bactéria.

O uivo caminhando sobre a ponte imóvel.
O castelo e o muro dedilhados no quadro azul.
Sinto a introdução e o posfácio deste rio
que golpeia as paredes com mãos nuas.

O mínimo. O minúsculo. O quase nada.
Dedilhai as últimas notas vagas
que recordam a imagem deformada
do psicótico que caminha sobre o fio dental.


 
Roberto Piva
QUATRO POEMAS PIVIANOS

Willi Kissmer








III


O corvo de pelúcia esfaqueado pelas costas
traz os olhos esbugalhados mirando a parede alada.
As estantes, as páginas comidas por traças,
adormecem na noite de meus surtos compulsivos.

Olhos imensos de um desenho de carvão negro
mãos em garras batendo teclas ideais.
O cheiro de perfume velho e asfixiante.
A teia de aranha presa entre os ossos mortos.

Lá fora, homens dirigem seus carros vagarosamente
seguindo as pernas nuas das mulheres prostitutas.
Enquanto corpos se misturam na madrugada convulsiva
de salões apertados, iluminados por rosas ensangüentadas.

Meus passos, meus ruídos, aquele rosto assimétrico.
Triunfa a idéia do parto cesariano sem anestesia.
A dançarina com suas vestes invisíveis
caminha no jardim de lâminas e gafanhotos.


Escreverei dez mil poemas ao poeta necropolitano
sem esperanças de ter meus sonhos confundidos
com o delírio e o êxtase do pai xamânico.
Sou urbano, sou quase cético. Morfina e sonhos.


Roberto Piva
QUATRO POEMAS PIVIANOS

Willi Kissmer






IV


Dêem-me um anestésico. A vida dói e arde.
Não sei controlar meus impulsos demoníacos.
Não acredito em forças de outro mundo.
Sou eu, meus versos e o perigo das frações.

Arranco minhas vísceras poéticas do ostracismo.
Trezentos dias e cinqüenta noites marianas.
O caracol de meus cabelos caídos no chão de espelhos.
O sangue e os olhos transformados em areia cinza.

A árvore sem galhos escondem os meninos saltimbancos.
Foi-se o tempo em que se acreditava nas histórias ditas.
Sempre começo pelo meio e jamais olho para os lados,
enquanto rio e sufoco meu próprio rosto turvo.

Minha maquiagem, os primeiros tombos das gaivotas.
Atiro farpas e pragas para antigos e mórbidos desejos.
A torre delirante de um neocórtex em latência,
ou o pedúnculo, ou o miocárdio, ou o octogentésimo.

Quatro poemas nos espaços angustiados do processo.
Sou eu? Sou ateu? De que me valem as respostas?!
As idéias me levam ao eterno estado de castidade
entrelaçado neste puro estado de sonho e malogro.


QUATRO POEMAS PIVIANOS
Roberto Piva

Willi Kissmer







OS ANJOS DE SODOMA


Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder o ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando a
loucura e o arrependimento de Deus


Roberto Piva
(in: Paranóia, 1963)

Willi Kissmer







Paranóia


Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das
beatas
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação


Roberto Piva

Willi Kissmer







Praça da República dos Meus Sonhos


A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem
   de morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando
   na tarde de esterco
Praça da República dos meus sonhos
   onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
   onde beatificados vêm agitar as massas
   onde García Lorca espera seu dentista
   onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces
os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão
lábios coagulam sem estardalhaço
os mictórios tomam um lugar na luz
e os coqueiros se fixam onde o vento desarruma os cabelos
Delirium Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel
   anjos deitados nos canteiros cobertos de cal água fumegante nas
   privadas cérebros sulcados de acenos
os veterinários passam lentos lento Dom Casmurro
há jovens pederastas embebidos em lilás
e putas com a noite passeando em torno de suas unhas
há uma gota de chuva na cabeleira abandonada
enquanto o sangue faz naufragar as corolas
Oh minhas visões lembranças de Rimbaud praça da República dos meus
   Sonhos última sabedoria debruçada numa porta santa.


Roberto Piva


Willi Kissmer


Willi Kissmer

Willi Kissmer nasceu em Duisburg, Alemanha, em 1951. Multi-talentoso enquanto jovem, não havia se decidido entre as artes plásticas ou a música. Estudou em Folkwangscule, Universidade de Essen, e depois na Universidade de Duisberg. Quanto à sua música, Kissmer tornou-se um reconhecido guitarrista e já gravou três álbuns.
Embora sua arte seja relativamente nova para a América do Norte, o artista não é estranho no continente, assim como na Europa, a antiga União Soviética e a Ásia, por onde já viajou bastante.  Descrito como mestre contemporâneo, Kissmer já foi representado por galerias e museus da Califórnia a Leningrado.
O artista aplica combinações de técnicas em seu trabalho. Um leque de tons quentes e limites eletrizantes marcam seus temas, ligando a arte de Kissmer a uma longa tradição de realismo na pintura européia. A base de sua arte está na paixão pela natureza morta, combinando elementos da figura feminina, objetos do dia a dia e arquitetura residencial. Um sentido de observação elevada com refinada simplicidade cria obras que se movimentam sem ser convencionalmente belas, mas que estimulam e confrontam.


Contato:
Willi Kissmer
Rheinanlagen 12
47198 Duisburg

Fon: 02066 - 1626
Fax: 02066-12040
info@willikissmer.de








XVI


abandonar tudo. conhecer praias. amores novos.
poesia em cascatas floridas com aranhas
azuladas nas samambaias.
todo trabalhador é escravo. toda autoridade
é cômica. fazer da anarquia um
método & modo de visa. estradas.
bocas perfumadas. cervejas tomadas
nos acampamentos. Sonhar Alto.

Roberto Piva



Roberto Piva nasceu em São Paulo, 25 de setembro de 1937. É um poeta brasileiro,
frequentemente classificado como um "poeta maldito" e, de fato, sua poesia evoca muitos poetas que são tradicionalmente considerados malditos, citando-os nominalmente grande parte das vezes. É o caso de Álvares de Azevedo, Antonin Artaud, Arthur Rimbaud, Marquês de Sade, Pier Paolo Pasolini, entre outros. Jorge de Lima também está presente na dicção de Piva, que dedicou a ele o poema "Jorge de Lima, panfletário do Caos", do livro Paranóia.
Poetas mais canônicos, como Fernando Pessoa, Federico Garcia Lorca e Walt Whitman também influenciaram o poeta.
Roberto Piva logo se destoou como uma das vozes mais originais da poesia paulistana. Adepto do surrealismo e influenciado pela geração beat, Piva escreve a cidade de São Paulo com um olhar altamente erotizado, acompanhado pela experiência com narcóticos e alucinógenos.
No contexto das escolas literárias, a obra de Piva evoca experiências do Romantismo, Simbolismo, Surrealismo e da Geração Beat. Roberto Piva também é um grande leitor de literatura italiana, especialmente da obra de Dante Alighieri.
O poeta parece não ter tido qualquer contato com os concretistas paulistanos dos anos 1950 e, apesar de ter sido incluído na antologia 26 Poetas Hoje, também não teve experiências como as da chamada Geração mimeógrafo.
Em seus livros mais recentes, é grande a presença do xamanismo.