Fidel Garcia

Fidel Garcia





Há palavras que nos beijam



Há palavras que nos beijam 
Como se tivessem boca, 
Palavras de amor, de esperança, 
De imenso amor, de esperança louca. 

Palavras nuas que beijas 
Quando a noite perde o rosto, 
Palavras que se recusam 
Aos muros do teu desgosto. 

De repente coloridas 
Entre palavras sem cor, 
Esperadas, inesperadas 
Como a poesia ou o amor. 

 (O nome de quem se ama 
Letra a letra revelado 
No mármore distraído, 
No papel abandonado) 

Palavras que nos transportam 
Aonde a noite é mais forte, 
Ao silêncio dos amantes 
Abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill

Fidel Garcia






A meu favor


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor

As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

Alexandre O'Neill

Fidel Garcia






Mesa dos sonhos

Ao lado do homem vou crescendo 

Defendo-me da morte quando dou 
Meu corpo ao seu desejo violento 
E lhe devoro o corpo lentamente 

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem 
Todas as formas e começam 
Todas as vidas 

Ao lado do homem vou crescendo 

E defendo-me da morte povoando 
de novos sonhos a vida.


Alexandre O'Neill

Fidel Garcia





Soneto a duas mãos 



A mão que me sustenta e eu sustento 
é mão capaz das vinte e cinco linhas 
e do selado azul de um requerimento 
ou doutras diligências comesinhas...

Habituada por secretarias, 
esperta, decidiu de um grave acento, 
a vírgulas guindou torpes cedilhas 
e mastigou papel, seu alimento... 

Contraiu calos, revoltou-se às vezes, 
contra certos despachos, tão soezes 
que até o dedo auricular se ria... 

Com dois dedos de aumento se curvava 
e logo, altiva, à esquerda se mostrava... 
Agora? 

Estão as duas na poesia...


Alexandre O'Neill

Fidel Garcia





Elogio Barroco Da Bicicleta


Redescubro, contigo, o pedalar eufórico
pelo caminho que a seu tempo se desdobra,
reolhando os beirais - eu que era um teórico
do ar livre - e revendo o passarame à obra.
Avivento, contigo, o coração, já lânguido
das quatro soníferas redondas almofadas
sobre as quais me entangui e bocejei, num trânsito
de corpos em corrida, mas de almas paradas.
Ó ágil e frágil bicicleta andarilha,
ó tubular engonço, ó vaca e andorinha,
ó menina travessa da escola fugida,
ó possuída brincadeira, ó querida filha,
dá-me as asas - trrim! trrim! - pra que eu possa traçar
no quotidiano asfalto um oito exemplar!


Alexandre O'Neill

Fidel Garcia







Amigo


Mal nos conhecemos 
Inauguramos a palavra amigo! 
Amigo é um sorriso 
De boca em boca, 
Um olhar bem limpo 
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece. 
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão! 
Amigo (recordam-se, vocês aí, 
Escrupulosos detritos?) 
Amigo é o contrário de inimigo! 
Amigo é o erro corrigido, 
Não o erro perseguido, explorado. 
É a verdade partilhada, praticada. 
Amigo é a solidão derrotada! 
Amigo é uma grande tarefa, 
Um trabalho sem fim, 
Um espaço útil, um tempo fértil, 
Amigo vai ser, é já uma grande festa! 


Alexandre O'Neill

Fidel Garcia








Ao Rosto vulgar dos dias


Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.
Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.
Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

Ao rosto vulgar dos dias,
A vida cada vez mais corrente,
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.



Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.


Alexandre O'Neill

Fidel Garcia









O amor é o amor 


O amor é o amor - e depois?
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!

O amor é o amor - e depois?



Alexandre O'Neill

Fidel Garcia









Redacção


Uma senhora pediu-me
um poema de amor.

Não de amor por ela,
mas «de amor, de amor».

À parte aquelas 
trivialidades «minha rosa, lua do meu céu interior»
que podia eu dizer
para ela, a não destinatária,
que não fosse por ela?

Sem objecto, o poema
é uma redacção
dos 100 Modelos
de Cartas de Amor.


Alexandre O'Neill

Fidel Garcia








Fala


Fala a sério e fala no gozo
Fá-la pela calada e fala claro
Fala deveras saboroso
Fala barato e fala caro
Fala ao ouvido fala ao coração
Falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala francês fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
Desentulha a garganta levanta o pescoço
Fala como se falar fosse andar
Fala com elegância - muito e devagar.


Alexandre O’Neill

Fidel Garcia


Fidel Garcia

“A arte expressa o espírito de humanidade em nossa jornada comum através dos tempos.”

A arte do mexicano Fidel Garcia mistura realismo figurativo e expressionismo abstrato.  Suas pinturas levam o expectador a experimentar a confluência entre nosso eu espiritual e o eu corpóreo, a coincidência de realidade e fantasia, e a existência simultânea do físico e do metafísico. Mais do que simplesmente buscar o conhecimento dessas forças diametralmente opostas, as pinturas de Garcia nos auxiliam a encontrar a harmonia e equilíbrio entre elas. Cada imagem que emerge de uma série de quadros explora um inesperado mundo interno e externo de imaginação humana.
Garcia explora visualmente ilusão e realidade, a dicotomia da vida e além, em sua mais recente coleção em branco e preto.  Nessa série, Garcia explora a variedade do drama entre vida e pós-vida, cada imagem tomando um rumo inesperado na realidade e, então, em um estado de surrealismo. Como ocorre com muitos dos grandes mestres, a visão única de Garcia é uma expressão de sua própria jornada espiritual.








Auto-retrato 


O'Neill (Alexandre), moreno português, 
cabelo asa de corvo; da angústia da cara, 
nariguete que sobrepuja de través 
a ferida desdenhosa e não cicatrizada. 
Se a visagem de tal sujeito é o que vês 
(omita-se o olho triste e a testa iluminada) 
o retrato moral também tem os seus quês 
(aqui, uma pequena frase censurada...) 
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!) 
e tem a veleidade de o saber fazer 
(pois amor não há feito) das maneiras mil 
que são a semovente estátua do prazer. 
Mas sobre a ternura, bebe de mais e ri-se 
do que neste soneto sobre si mesmo disse...



Alexandre O'Neill

Alexandre O’Neill


Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill (Lisboa, 19 de Dezembro de 1924 - Lisboa, 21 de Agosto de 1986), ou simplesmente Alexandre O'Neill, descendente de irlandeses, foi um importante poeta do movimento surrealista.
Autodidacta, O’Neill foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa. É nesta corrente que publica a sua primeira obra, o volume de colagens A Ampola Miraculosa, mas o grupo rapidamente se desdobra e acaba. As influências surrealistas permanecem visíveis nas obras dele, que além dos livros de poesia incluem prosa, discos de poesia, traduções e antologias.