Renato Guttuso

Renato Guttuso




Os cânones da dor


unhas nos sulcos
da pele, em todos
os poros da dor:

a dor que é pedra
no limiar da fala
que verte em suor.

o som do inaudível
uivo — uivo ósseo,
uivo epidérmico —

instila, inflama
todas as suturas
e corre, abissal

em verdes glóbulos
de sonora náusea
e dolorosa repulsa.


De Sutra, 1992


Claudio Daniel

Renato Guttuso








Porque a hora é violenta


Porque a hora é violenta e tudo esmaga, abrir cabeças 
de serpente.
Há o verde sonoro 
de metais;
há o roxo 
da flor 
cujo nome 
ignoramos. 
Dedos rugem 
escura perplexidade; 
arcos rebentam 
bicos 
de pássaro. 
Sou anfíbio, 
e calo 
o que me apavora. 
Onde viajar outros dias possíveis? 
Como 
extirpar 
essa desolação? 
Eis o inevitável
campo 
de batalha;
eis a letra inverossímil, vermelho 
decapita 
amarelo.
Sinceramente,
confesso 
meu pesar:
quando ponteiros corroem pulsos, 
povoar 
mandíbulas 
para corvos.
A hora é violenta e o medo em escamas
arranha 
a pele 
da voz.
Explodir palavras-de-argila; 
degolar
leões
de pedra 
(ignotos); 
mutilar 
a escura epiderme,
em chuva 
azul-
de-agonia.
Tudo
por um 
nada
soando crânios e trompetes,
cortando (súbito)
o branco-
cinza
da manhã.
— Sri Baghavan uvaca:
Yam hi na
vyathayanty ete
purusam 
purusarsabha
sama-duhkha-sukham dhiram
so ‘mrtavaya 
kalpate.


Claudio Daniel

Renato Guttuso






Filósofos, cogumelos



Rumor de verde-água esse bosque de caninos que desaparece.

Trevos

na boca

- odor

de cogumelos

e lua-de-

mosquitos -.

Estranha senhora fênix viaja em

caligrafia sua

tiara

azul.

Vagares da lua de outono biombo jasmim dragão

no teto

curvo

como atravessar

espelhos.

- Armas e cascos de cavalos

ao longe -.

Filósofos-de-laca conjeturam possíveis amanhãs


Claudio Daniel

Renato Guttuso









No olho da agulha


Tatuar silêncios como formigas.
Afogar os relógios
numa pálpebra.
Vestir o grito com a pele 
do escaravelho.
Torcer os músculos da face
em perplexidade.
Cruzar a via absurda
das unhas, desorientado,
obscuro, recurvado
sobre as nádegas. 
Saber que toda flor é ridícula,
e mesmo assim cultivar
o minério, 
a dor,
a surda epilepsia.
Esquecer o próprio nome,
e sovar a terra
até a exaustão.
(Fosse apenas uma canção de colheita,
você diria amor e outras
palavras fáceis.)
Com o riso estúpido do camelo,
viajar ao olho
da agulha,
labiríntico, insano,
acreditando que toda história é um ácido.
Depois cauterizar a ferida,
aceitar o reflexo, 
o simulacro,
lembrar-se 
da semente antes do pão.
Tayata gate gate 
paragate parasamgate 
boddhi soha.


Claudio Daniel

Renato Guttuso








Liber Aquae
                       A Luiz Roberto Guedes

Um
livro da água;
espiraladas páginas
de jade em tumulto;
côncavo espelho desolado
em que o tempo lento flui;
quem teceu — em musselina —
a tormentosa tapeçaria
de sua secreta escritura?
A esfíngica branca lua abissal
e o temerário dragão-de-nébula
são líquidas ficções alucinadas
de suas vagas de chrysoprasu?
Heráclito leu em seus enigmas aquosos
aquilo que Lao-Tsé pensou em Cathay,
alfombra de arqueiros e calígrafos?
O mar — floresta sinfônica, seminal —
verde lume — seda enlouquecida
em arabescos — metáfora insidiosa
da eternidade — num círculo de águas.

1999


Claudio Daniel

Renato Guttuso









Noite-seios

luazulada
alvíssima
deslinda-
se no céu
finíssima
auréola:
pó de luz
que cintila
nos róseos
mamilos
desnudados
— lua
em luas
refletida,
prata
em prata
lucilada

1998


Claudio Daniel

Renato Guttuso









Noite-oceano


ondulosamente
a noite
azul-turquesa
oceânica
perpassa
em tuas
pupilas
— seda
azeviche
jaspe
negro
pele de
jaguar:
a comum
cegueira

1998


Claudio Daniel

Renato Guttuso









Noite-flor


amareladamente
a lua irrompe
na teia
azul-da-prússia
qual peônia
ouro rútilo
favo de mel
e se vai
(fio d'água-luz
em água-água
desatado)
sem dizer
ah deus

1998


Claudio Daniel

Renato Guttuso








NOITE-MIM


anoiteci

fiz-me 
sombra
avesso
de mim

sombra 
de mim

avesso
da
sombra

noite
de
mim

avesso
da
noite

sombra
de
mim


Claudio Daniel

Renato Guttuso





ARTITURA


Perplexidade, raios de um sol
que redesenha seu centro;
essa matéria tão delicada,
ferozes epitélios da flor;
deslizando das pupilas,
revoluta, para outro mar,
após tingir o flanco da noite.
Fosse apenas o perambular
em outra relva, seria tema
de chanson;  dissociada de mim,
reclinada em lua minguante,
seria musa de retrato fauvista,
excedendo o rubro tigrino.
De todo modo, um dia vou
felinizá-la em partitura.


Claudio Daniel

Renato Guttuso



Renato Guttuso



O siciliano Renato Guttuso (1912-1987) nascido em Bagheria, trocou a idéia de uma licenciatura em Direito pela carreira como pintor. Seu primeiro período mostra suas primeiras pinturas representando os camponeses de sua terra natal.  Depois,ele adotou um estilo puramente figurativo, com temas firmemente enraizados no mundo rural camponês, com uma propensão para as questões sociais e temas abertamente políticos.
Quando a Segunda Guerra Mundial estourou, Guttuso produziu uma série de pinturas intitulada Gott mit Uns - Deus conosco - , o lema gravado nas fivelas dos cintos dos soldados alemães ". O artista nunca traiu seus ideais, que culminaram no manifesto antifascismo I funerali di Togliatti. Após a guerra, modelou seu estilo, no início chamado de Pablo Picasso "período azul". Em 1946, fundou o Fronte Nuovo delle Arti, com Birolli, Vedova, Morlotti, Turcato.
Suas pinturas refletiam a situação na Europa, particularmente na França.Em Paris, pintou os alunos nas marchas de protesto em primeiro plano, no que seria lembrado como o maio parisiense. A partir de 1969 morou em Roma, na Via Margutta, com a sua companheira Marta Marzotto, que marcou o início de seu período introspectivo. Ele embarcou em uma série de pinturas autobiográficas, incluindo uma de suas maiores obras-primas, Strega Melancolia, pintado em 1982.
Guttuso viveu um período marcado por enormes modificações sociais e culturais, tendo desempenhado um papel de liderança em todas elas. Seu estilo figurativo, no entanto, permaneceu notavelmente consistente. No fundo, ele estava sempre inspirado por sua exuberante e luminosa Sicília. Suas pinturas expressam sua humanidade através de uma espécie de plasticismo tortuoso. As formas humanas são tensas, nervosas, mas sempre reconhecíveis, que ele comprime em suas telas onde encarnam todo o sofrimento no mundo.






  
EPIDERME EXILADA DE SI 
 
 
Nenhum sol, minério ou latência do casulo:
só o silêncio duplicado em orquídea, 
occipital do neblí que desinventa a metáfora 
de uma estrela..
 
                        2005
 
Claudio Daniel
 

Claudio Daniel

Poeta. Tradutor. Ensaísta. Magro. Irônico. Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Praticante de Tai Chi Chuan e de Aikidô. Publiquei, entre outros títulos, os livros de poesia Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001), Figuras Metálicas (2005), Fera Bifronte (2009) e Letra Negra (2010). No campo da ficção, publiquei o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo (2004). Como tradutor, publiquei a antologia Jardim de camaleões, a poesia neobarroca na América Latina (2004), entre outros títulos.