Ricardo Celma









Ser Parecer

Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida

Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos.

Mia Couto 



Ricardo Celma









Tu me bebes
e eu me converto
na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda
mais despida.

Pudesse eu ser tu
e em tua saudade ser
a minha própria espera
Mas eu deito-me
no teu leito quando apenas
queria dormir em ti,
E sonho-te quando
ansiava ser
um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor:
simples perfume, lembrança
de pétala sem chão
onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há
depois do mar.

Mia Couto

Ricardo Celma








Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

Mia Couto  

Ricardo Celma






Para Ti


Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto 


Ricardo Celma







 Fui Sabendo de Mim


Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia

Mia Couto

Ricardo Celma








Destino

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

Mia Couto 


Ricardo Celma







"Confidência"


Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça


Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno


Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci


Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos


No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome

Mia Couto


Ricardo Celma








A Adiada Enchente


Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.

Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.

Mia Couto

Ricardo Celma








Nocturnamente


Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

Mia Couto 


Ricardo Celma






Eu era a tua poesia

- És parecida com a Terra. Essa é a tua beleza.
Era assim que dizias.

E quando nos beijávamos e eu perdia respiração e,
entre suspiros, perguntava: em que dia nasceste?

E me respondias, voz trémula:
estou nascendo agora.

E a tua mão ascendia
por entre o vão das minhas pernas
e eu voltava a perguntar: onde nasceste?

E tu, quase sem voz, respondias:
estou nascendo em ti, meu amor.

Era assim que dizias.

... tu eras um poeta.
Eu era a tua poesia.

E quando me escrevias,
era tão belo o que me contavas
que me despia para ler as tuas cartas.
Só nua eu te podia ler.
Porque te recebia não em meus olhos,
mas com todo o meu corpo,
linha por linha, poro por poro.

Mia Couto

Ricardo Celma










Quando já não havia outra tinta no mundo o poeta usou do seu próprio sangue.
Não dispondo de papel, ele escreveu no próprio corpo.
Assim, nasceu a voz, o rio em si mesmo ancorado.
Como o sangue: sem voz nem nascente.

Mia Couto

Ricardo Celma




Quantas vezes li e ouvi que a arte estava morta, que uma pintura no cavalete não mais fazia sentido. Quantas vezes nós artistas, tentando seguir uma profissão e tentando reverenciar nossos professores, rejeitamos todas as novidades ou vanguardismos na arte? Mas, há algo mais inovador para a época em que vivemos este tipo de pintura? Em uma época onde tudo é voraz e vertiginoso, a arte força a contemplação. Em um tempo onde tudo é acelerado, a arte leva a respirar fundo e ter objetivos pensados com o tempo; agora que tudo é virtual, imaterial, a arte te faz sentir as texturas. Agora que a tecnologia avança esmagando tudo o que havia antes, a arte só precisa de um pedaço de carvão, como há 12.ooo atrás.
Talvez seja verdade, e o críticos tenham razão e talvez nós pintores sejamos apenas sombras de uma arte já morta, mas quando se sente essa necessidade de pegar um pincel e esquecer o mundo, seus problemas e medos e apenas se afundar em pensamentos que se transformam em cores e imagens, vou continuar a usufruir da pintura, antes que acabe...

Ricardo Celma.







Pequeninura do morto e do vivo


O morto
abre a terra: encontra um ventre

O vivo
abre a terra: descobre um seio

Mia Couto