Bruno Torfs








SONHO, REALIDADE, E OUTRO LUGAR ESCONDIDO




Mas quem poderá dizer se aquilo que encaramos como uma desventura pode não ser apesar de tudo, uma fonte de crescente felicidade, talvez até maior do que aquelas que vivenciamos? Com certeza é um mau negócio desagradar aquilo que é um profundo anseio. Temo que tenha de colocar isto diante de severo julgamento.

Escutou-se na última noite de sábado um arrastar de correntes por toda a casa. Tivera sido envolto a um sono breve, acreditou ter dormido algumas horas, quando despertou subitamente, um pouco antes da madrugada, um pouco atordoado, não tinha costume de dormir durante a noite. Levantou-se, e bebeu um copo de água direto da torneira, sentia que ficara completamente umedecido, como se tivesse ressuscitado de um túmulo: dormir é um pouco como morte. Seguiu quinze passos até a sala, onde se sentou ligeiramente no sofá, cruzou as pernas com suavidade, acendeu um de seus cigarros, e passou a tragá-lo com muito prazer. Os ruídos desafinados das correntes persistiam, ignorou, e continuou em suas tragadas que ficavam cada vez mais saborosas. Olhava atentamente o quadro na parede, sem dúvida, era o melhor quadro que já havia pintado. Continuava a contemplar, era um de seus costumes corriqueiro, ficava quieto, apenas observando e sentindo o lugar onde estava, quase em transe, só não ficava completamente imóvel, pois o coração pulsava pausadamente e os lábios moviam-se um pouco, para eliminar a fumaça dos pulmões. A claridade que incidia sobre suas feições e seu corpo magro e esquálido conferia a todo seu aspecto um ar de melancolia e misericórdia.

O barulho das correntes ainda continuava... Primeiro foi só um leve murmúrio, depois tudo ficou em silêncio como se os movimentos tivessem sido paralisados por um súbito pânico. Quebrou a concentração, levou a mão até a testa, limpou o suor que já escorria por entre as sobrancelhas; desceu a mão e empurrou contra o cinzeiro a ponta do cigarro ainda com uma viva fuligem. Inclinou a cabeça e ficou demoradamente vendo a fumaça subir, e os restos de fumo apagar-se completamente; esfregou um dos dedos da mão esquerda no negro-de-fumo e passou ao longo das pálpebras, como que se maquilando para uma noite de ritual.

A noite era chuvosa, com muito vento, e o céu estava encoberto sinistro e incerto. A lua estava cheia e ás vezes brilhava clara e límpida, e às vezes totalmente oculta por trás das espessas negras e maciças massas de nuvens que se deslocavam velozmente, e se tornavam maiores a cada momento, aglomerando-se como se tivessem juntando forças para uma

tempestade iminente. Ruídos desajeitados das correntes prosseguiram. Essa séria e solene intimação dos sons inquietantes comunicava algo ainda secreto. Levantou-se do sofá caminhou até a porta da sala, abriu-a apressadamente, como que tivesse ao outro lado uma visita urgente que não podia esperar. Foi então, que de súbito, num corte de vento, uma borboleta adentrou num vôo gracioso, e passou a sobrevoar timidamente ao longo da casa, desde a sala à cozinha. Impressionou-se ao vê uma borboleta noturna; nunca antes havia visto uma em plena noite, vívida de tão azul, imaginava que elas dormiam durante á noite, e sonhavam com flores primaveris. Não fez alarde, deixara confortavelmente livre como se dissesse, “ah, coisinha linda, sinta-se em casa...”, assim, ignorando a presença da borboleta, abaixou-se, engatilhando como uma marionete, e deitou-se com brandura no chão. Encolhido em forma de concha, sentia o chão gélido, e novamente ouviu as correntes arrastando em atrito no solo, era apenas um som distante dentro da própria casa. Levou o dedão da mão direita à boca, e passou a sugá-lo com muita vontade, se sentido menino, desprotegido de tão menino que estava.

Ainda deitado, com o lado direito do rosto no chão frio, avistou no canto de uma das paredes, algumas pequenas mulheres, três ou quatro, e elas giravam suas rocas de fiar, e fiavam e teciam, cantavam juntas em uma língua estranha, um dialeto há tempos esquecido. Com certo esforço, ergueu-se do chão, acendeu mais um cigarro, escorou as costas nas paredes com um dos pés suavemente inclinado e pensou:

— Por mil folhas de arrudas e alhos, estou vendo mais do que gostaria de ver, vou tratá-las com indiferença também, é certo que daqui a pouquinho elas voltam para o lugar de onde vieram...

Como se não bastasse, além do barulho quase incessante das correntes, uma borboleta noturna e algumas pequenas mulheres, agora vira uma luz difusa, flutuando alguns poucos palmos do chão, deslizava sutilmente, até assumir a forma de um menino nu, com a pele branquinha; como se tivesse acabado de ser tecida com a mais pura seda pela roca das velhas mulheres. O menino que emanava uma luz ressoante aproximou-se dele e estendeu a mão, como que pedisse algo. Sem compreender o que afinal o pequeno desejava, pois nenhuma palavra havia pronunciado. Permaneceu calado e imóvel, esperançoso de que logo ele desistiria do que quer que fosse, porém o menino continuou com braço estendido, agora com a testa franzida de apreensão. Naquele momento com o rosto quase rubro, e um tanto temeroso, arriscou-se a falar algumas palavras tremulas: ― O que desejas pequeno, gentilmente? O menino nu continuou calado e com o braço estendidos em sua direção. Insistiu, e novamente falou com meninozinho: — Na verdade era o que eu estava pensando neste instante, vou sem demoras preparar o que desejas. E foi, que ele rapidamente seguiu para a cozinha, onde a borboleta azul ainda continua a resvalar no ar, pegou

algumas cascas de ovos e ervas finas, e preparou um caldo em uma panela de barro, e este ofereceu de imediato ao pequenino nu, que estava ainda ao seu lado com a mão elevada. O menino segurou a tigela branca, e tomou o caldo com toda calma que alguém possa possuir; ao terminar, fez um gesto de agradecimento e começou a correr atrás da borboleta ligeiramente por entre os móveis. Como ele sabia o que o menino desejava? É que qualquer coisa que fosse feita de bom e franco sentimento seria aceita com júbilos. Sentiu-se muito satisfeito em ter compreendido o silêncio do menino; por vezes é tão difícil à compreensão do silêncio.

Depois de acender mais um cigarro, como um cachimbo sagrado, e este tomara um sabor ainda melhor, e uma fragrância deliciosamente desfrutável, estava cheio de sincero contentamento. Passou a dançar ao som dos batuques de uma melodia milagrosa, era um som de muitas vozes, cada uma delas misturando-se com as demais, até formar uma só voz, numa exultação também sagrada. Escutava com vigilância, para não perder nenhum acorde, dançava livremente, como se fosse ondas soltas em pleno mar. No alto de sua liberação, o menino que agora segurava delicadamente a borboleta em um dos dedos e as velhas mulheres o interrompeu. Gloriosa foram às visões a sua frente, as pequenas mulheres o cobriram com o mais delicado manto que já se viu, repleto de pequenas estrelas marinhas, cintilantes, manto este que haviam tecido ao decorrer da noite. O pequeno menino, novamente estendeu-o a mão, e agora sem temor ele também retribuiu, erguendo com docilidade a mão de encontro à pequena mãozinha.

Ele então, foi conduzido por uma extensa escada de papelão, rodopiando com a leveza de uma flor no vento, ao som da melodia secreta, que acompanhava o ritmo de seus movimentos. Foi lhe dada a maior das honrarias dentre eles, a de ser levado para um mundo escondido, entre o sonho e a realidade, um lugar intermediário, de raro encanto. Foi lhe ofertado muitos criados para servi-lo, pincéis e tintas, de todos os pigmentos que se possa imaginar, e tudo mais que desejasse para contentar seu coração. Na verdade, o que se via por lá, era uma doce criatura com as feições tão plácidas como se o seu sono nunca tivesse sido perturbado. Antes de o dia nascer, que já era um nublado dia de domingo, a casa estava vazia e quase silenciosa, com exceção das correntes que se escutavam ruidosamente por todos os cômodos. Certamente que eram elas que o prendiam impetuosamente. Hoje em dia ele só é visível, vez ou outra, aos devotos que cumprem penitência ou aos que gostam de caldo de cascas de ovos.



Sindri Nathanael


Um comentário:

Anônimo disse...

Um blog que mantém o alto nível, construindo uma galeria artística compondo com poemas que se completam, e se fundem de forma surpreendentemente bela.Um mundo vivo, uma floresta rica, pulsante e amorosa feita por Bruno Torfs e aqui formatada por uma fada encantada.