Bruno Torfs









Filtro dos sonhos



Ele tentou aniquilar a dor cinco vezes, e por cinco vezes fracassou. Buscou dentro do mais escuro de sua intimidade um pouco de luz. Aquele brilho de que há tempos havia esquecido, porém não encontrou. Vasculhou a escuridão que haviam se instalado em sua memória, cinco coisas encontrou: medo, insegurança, tristeza, vazio e saudade. Sim, saudade de quem fora um dia, irremediável saudade dos dias de alegrias e contentamento que compartilhara com a única alma que lhe amara sem reservas.

Quando ainda era apenas um menino, encontrou uma velha senhora, a qual depositou confiança e afeto. Ela ofertou-o coisas nunca antes experimentadas por ele, era desconhecedor de tantas coisas. Era apenas menino. Acordava e contemplava as delicadezas do lugar onde vivia, com todas as cores e luzes, delicadezas e perfumes apenas vistos e sentidos por ele, apenas por ele. Criara um outro mundo para esconder-se, imaginário, porém real a seus olhos. Somente sonhava e sonhava. Os outros meninos da redondeza haviam esquecido de sonhar: corpos infantis sem alma sonhadora. Sobrevivia em terras agrestes, numa profunda pobreza, desde o pão à afetividade de que tanto necessitava: duas fomes essências que devem ser abastecidas. Mas em seu coração ainda carregava a inocência de que os meninos são feitos. Em seu coração brotava estrelas e esperança.

A senhora que havia escolhido o meninozinho para amar, também buscava um pouco de amor. Sua inocência havia sido pisada, roubada desde muito cedo, sua alma tornara-se esconderijo para seus sonhos, a vida não havia lhe dado muitas oportunidades para torná-los reais... Apenas sobrevivera naquilo que um dia disseram-na que era vida. Sua miséria estava estampada em suas mãos e olhos, carregava a dor de toda uma vida escassa, mesmo depois da tranqüilidade alcançada com tanto esforço. Marcas irrevogáveis.

Ambos compartilhavam da alegria de viver. A senhora voltara a sonhar, e tornara-se outra vez menina. Seus passos eram mais aéreos, seus olhos como bolhas de sabão, e seu sorriso, este era um sorriso com profunda docilidade. Dentro da velha casa, havia brotado um lindo jardim, com as mais belas flores, e as mais leves brisas. É, que seu velho corpo agora estava pleno de alma, e abastanças de sentimentos revigorados. Chorava de felicidade, chorava com gratidão... E o pequeno menino de fome nunca mais havia chorado, tão pouco dos dias de vazio e tristeza. Estava experimentando o amor, e o amor estava sendo realizado em sua absoluta plenitude. É que os frios invernos perdem-se a cada alvorada de primavera.
Ciclos se fecham... Mesmo aqueles construídos com felicidade. É a vida. Depois de algum tempo, a senhora que estava mais senhora ainda, definhou em sua velhice. Faleceu dormindo, em uma noite qualquer, aquecida pelo amor do filho, naquele último instante. No menino, lágrima alguma lhe molhou a face. Abraçou a mãe, com o corpo ainda quente e agradeceu-lhe pelos instantes que havia desfrutado junto a ela. Fechou os olhos e agradeceu numa prece. Naquela noite dormiu entrelaçado no corpo desfalecido da velha senhora... Como galhos de uma árvore agarrando os frutos para que não caíssem. Certamente esta não foi uma noite qualquer. Foi noite de profundo luto.

Após longínquos tempos, o menino que nunca deixara de ser menino, faz demasiado esforço para não esquecer as recordações da velha senhora. Sentado na varanda de sua casa, contemplando um nostálgico entardecer, envolto em ligeiras brisas que balançam os filtros dos sonhos, as cortinas e seus cabelos brancos, diante do belo crepúsculo que se formara. Ele pinta o rosto de sua senhora maternal, para que jamais esqueça daquela que lhe mostrou a delicadeza do amar e do compartilhar. O velho pintor em meio aos pincéis e tintas chora com ternura, pois acaba de sentir-se todo menino, acalentado naqueles braços nunca esquecidos. E todo menino enxuga as lágrimas, vai até a cozinha para fazer chá de macela. Macela, este era o nome de sua nobre senhora...



Sindri Nathanael



Um comentário:

Amor em Vermelho disse...

Fantástico!!! Uma beleza sem igual, uma doçura de esculturas. Uma vontade imensa de conhecer este paraíso em terras de cangurus.
Um gênio das artes, amei demais esta postagem.
Estou adorando ler os textos do Sindri, são muito bons. Grandes escolhas que só pode sair grandes e inesquecíveis postagens.
Tudo lindo em demasia.
Beijos encantados