Bruno Torfs










É SÓ O QUE TENHO PARA DIZER-LHES



Já lhes falei sobre uma mãe que adora desfrutar dos longos nove meses de gestação, mais que depois do parto afoga os filhos em uma bacia de água fervente. E de, uma outra que atira os filhos contra uma parede maciça de pedras marmorizadas, quando está tomada por fúria, ou sacode-os para o ar, acima da cabeça fingindo lhes segurar para dar a falsa impressão de proteção, deixando-os, em seguida cair no chão, repetindo vagarosamente o ritual, até que nenhum osso fique intacto aos impactos exercidos pela queda. Recordo-me de alguns pais que todos os dias, embriagados, ou não, estupram com prazer sádico, as filhas ante os olhos das mães, que nada fazem nada dizem... De um outro, ex-padre, que se casou com uma das senhoras de caridade, da comunidade, mais que nunca abandonou o desejo incontido por corpos infantis, meninos de preferência.

Ou, qualquer dia desses, tenha lhes dito, de um vizinho meu que matou a irmã com dezessete facadas acima da cintura; e outras cinco abaixo dela, ou do marido de minha professora que passou toda adolescência transando com a mãe alcoólatra, e que este, ao torna-se adulto passa a maior parte do tempo cheirando cocaína, ou fumando maconha com pasta à base de cocaína, insistindo numa cura que nunca chega... E que esta professora, também sucumbiu ao vício, e que um dia desses roubou-me dez reais da carteira, os únicos dez reais para comprar o almoço e o jantar. É certo, que não ficaram sabendo por aí, que a mesma apanha eventualmente do marido, quando ambos estão alucinados pelas substâncias alucinógenas; ou que os pequenos filhos sabem como preparar a mistura dos fartos baseados e como tecê-los. Logicamente não sabem de meu pai, que se divorciou de minha mãe, e agora vive a vida mais promiscua que se pode ter, obrigando todas as mulheres de que dele engravidam a fazerem constantes abortos. Não nasceu com a vocação para ser pai, e estas mulheres tão pouco a de serem mães.

Só que agora, eu posso falar-lhes de uma mãe que vendeu tudo o que tinha, saiu da cidade de interior onde vivia com seu filho portador de uma doença rara, e que passa a maior parte de seus dias deslocando sua criança de uma cidade á outra em busca da cura. Ou talvez, de uma outra que lutou contra um câncer no útero durante quatros anos interruptos, apenas para ter a graça de conceber um filho, ou uma filha, o que pouco importa, pois a dádiva de ser mãe suprirá todos os seus anseios maternais. Quem sabe não viram no noticiário da noite passada, a respeito de um senhor de oitenta e oito anos, que se atirou diante de um carro veloz, para evitar a morte de sua esposa distraída, em uma movimentada avenida de capital. Deveria dizer-lhes também sobre as crianças e adultos que padecem de enfermidades neste exato instante em que estás lendo, lutando corajosamente para permanecer respirando; desfrutando com prazer, cada dia que lhes são dados.

Cada brisa sacudindo os móbiles nos tetos de hospitais, ou a luz do sol por entre as frestas das janelas quarto adentra, ou mesmo as frágeis flores que recebem como promessa de esperança, para uma vida longa e duradoura; tudo contemplado e sentido como se fosse o último sentir. Poderia lembrar-lhes com sofreguidão, dos agrestes que molham a língua seca com o primeiro pingo de chuva, para saciar sede ou para finalmente lavar o corpo demoradamente, sobretudo, a delícia de verem suas terras novamente úmidas, revigoradas em verdes, seus bosques floridos e a mesa farta. Ah, e os que sobrevivem á guerras, os que lutam por liberdade de uma fé perseguida, os que tentam reconstruir o corpo mutilado por algum desastre. Aqueles que nesse momento clamam por salvação, ou sobem alguma escadaria, de joelhos curvados, sangrando, como agradecimento a uma benção alcançada... As pessoas que acabam de abrir os olhos depois de longínquos tempos em coma profundo, ainda com os olhos embaçados,
a desfrutar novamente das cores e do próprio rosto.

Pois bem, não agradeceríamos a chuva se não conhecermos os dias de seca e a terra rachada sem água. O alimento, se nunca virmos alguém padecendo de fome, ou se não tivéssemos comida para estancar o alarde dolorido de não comer... Mesmo as cores, se apenas conhecêssemos o preto ou o branco, ou o escuro absoluto. É o contraste da vida, ou que supomos ser vital: é o caminhar peregrino por desertos até encontrar ao outro lado, uma pequena fonte de águas frescas. É a seiva que corre por entre o tronco, e a ferida aberta que começa a fechar-se, e o sorriso pálido dos que sofre de anemia, é uma circunferência esvaecida no céu anunciando que iluminará a noite escura, a fumaça do cigarro subindo até desaparecer no ar. Ou seria, uma fogueira crepitante numa colina fria, ou um milharal com milhos secos; uma melancia apodrecida no chão.

Outrora, seria uma vela acesa escorrendo parafina quente pelo castiçal, ou o incenso queimando como fumo aos deuses, ou o rodopiar da saia de uma cigana descalça, ou ainda, uma mariposa colocando a ponta da asa para fora do casulo. Um beijo no primeiro bocejar da manhã. Um tropeçar, e o lascado na unha do dedão esquerdo; um correr danado atrás da pipa que se perdeu no vento, o musgo verdinho que começa a brotar na calçada. O cachorro envenenado, uivando para não morrer. A imagem da santa que caiu do altar e quebrou a cabeça, o arroz que queimou na panela. O velório do avô, ou o enterro da amiga, que não se pode ir por está em outra cidade. Bem se vê que, não se pode dar o legítimo valor ao paraíso, quando não se conhece o inferno. E, naquele dia em que estivermos cruzando a passagem para outros mundos, estaremos carregando o único tesouro que é possível de se levar nos bolsos: os momentos preciosos que vivemos. E nesse dia não poderei dizer-lhes mais nada, absolutamente nada.



Sindri Nathanael


Um comentário:

Valéria Cordeiro Malheiros disse...

Um mundo de alegrias, florestas, inspirações, música, e possibilidades infinitas de crescimento e grandes vôos.
Desejo a vocês artistas, escultores, poetas, formatadores de sonhos, aplausos, e que suas mensagens se espalhem para a eternidade.
Fantástica arte sua Fada do Mar de promover uma arca de sonhos e nos levar juntos nesta viagem.
Amo-te!!!